quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Arrancados da Terra. Lira Neto. «É difícil imaginar que uma região feérica como esta se situou, um dia, ainda que há cerca de três séculos e meio, numa zona rural»

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Para viver o sem-fim da eternidade

«Quem segue a pé de Chinatown em direcção ao Distrito Financeiro de Nova Iorque tarvez passe distraído pero número 55 de St. James Place, pelos 22 metros de comprimento de um muro baixo feito de pedras sobrepostas, encimado por grades pontiagudas e enferrujadas. Por trás dele, nada de excepcional parece chamar a atenção no pequeno descampado estabelecido metro e meio acima da calçada, o solo coberto de musgo e ervas daninhas. À primeira vista, aparenta ser apenas um terreno baldio, simples vazio urbano dando para os fundos deteriorados de prédios populares de três e cinco andares. Assim de passagem, só mesmo uma singular dose de atenção e curiosidade discernirá a praça rectangular disposta no solo do outro lado, as letras em alto-relevo recobertas pela pátina do tempo:

PRIMETRO CEMITÉRIO

DA

SINAGOGA ESPANHOLA E PORTUGUESA

SHEARITH ISRAEL

DA CIDADE DE NOVA IORQUE

1656-1833

Shearith Israel, nome da congregação mais antiga de Manhattan, significa Remanescente de Israel, referência ao povo judeu, o povo que presumivelmente descende da personagem bíblica Jacob, o último dos patriarcas, que segundo a Torá, o livro sagrado do judaísmo, foi rebaptizado Yisrael (aquele que luta com Deus), depois de medir forças com um anjo guardião disfarçado de ser humano. Os seus doze filhos terão dado origem às doze tribos israelitas, ou seja, ao povo de Israel. Se atraído pela discreta tabuleta, o observador mais atento perceberá que os blocos cinzentos dispostos de modo simétrico no terreno, do outro lado do gradeamento, são na verdade velhos túmulos e lápides funerárias, alguns deles quase ocultos pela vegetação rasteira. As inscrições dos jazigos, obscurecidas por sucessivas camadas de fuligem e poeira, revelam na sua maioria caracteres em hebraico.

À esquerda, outra placa metálica, ainda mais afectada pela oxidação fosco-esverdeada que denuncia a ausência de manutenção, apresenta uma breve informação adicional. Cravado num recôndito pórtico de tijolos, meio oculto pela gambiarra dos fios expostos que saem da parede do prédio vizinho, o letreiro indica que ali está o que resta do primeiro cemitério judeu nos Estados Unidos, consagrado no ano de 1656, quando foi descrito como fora da cidade.

É difícil imaginar que uma região feérica como esta se situou, um dia, ainda que há cerca de três séculos e meio, numa zona rural. De facto, os registos históricos dão conta de que, muito antes de os nivelamentos, aterros e drenagens alterarem de forma radical a topografia da ilha, as catacumbas dos judeus se encontravam mesmo fora da cidade, jazendo no sopé da colina de uma quinta bucólica, com vista privilegiada e imediata para o East River. Hoje, as sepulturas de St. James Place são uma relíquia histórica quase ignorada. Até princípios do século XIX, as dimensões do espaço eram bem maiores, embora já não consigamos defini-las com precisão. A progressiva expansão urbana acabou por tragar todo o espaço em redor, inclusive os próprios sepulcros, forçando a paulatina exumação de centenas de restos mortais, transferidos para outros locais à medida que a cidade se agigantava.

Reduzido a menos de 200 metros quadrados de área, o terreno submergiu numa relativa obscuridade. O cadeado no portão impede a entrada espontânea de visitantes. O mau estado de conservação e a presença de eventuais consumidores de crach pelas redondezas apressam o passo dos transeuntes, inibindo olhares mais contemplativos». In Lira Neto, Arrancados da Terra, 2021, Penguin Random House Grupo Editorial, 2021, ISBN 978-989-784-257-3.

Cortesia de PRHGEditorial/JDACT

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