domingo, 22 de agosto de 2021

Susanna Kearsley. Mariana. «Senti uma leve ponta de nostalgia pelo meu apartamento e pela minha vizinha do lado, Angie, com quem podia sempre contar para um café e dois dedos de conversa a meio da tarde»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Muito bem. A sua expressão desanuviou e desapareceu outra vez. Instala-se sempre um certo pânico, não é? Mr. Owen posicionou a minha mesa contra a parede da copa. Mas não há-de tardar a organizar tudo. Pois bem, acho que a mobília está toda. Só faltam os caixotes. Vou então buscar esses copos para o chá, certo? Era um homem estupendo, sem dúvida o homem mais organizado que já conheci, e valia bem o dinheiro extra que ia pagar pelos seus serviços. Quando comprara a casa três semanas antes, não reflectira muito sobre a questão da mudança da minha tralha de Londres para Exbury. Mas quando regressei ao meu apartamento em Bloomsbury e comecei a embalar os meus pertences, não tardei a perceber que precisava de ajuda profissional. Além do valioso conjunto de móveis do meu quarto, outra herança da tia Helen, tinha a mobília da sala e da cozinha, os materiais do meu estúdio, o meu estirador e as centenas de livros que tinha comprado em saldos e lojas de segunda mão durante os anos que vivi em Londres. Por recomendação de um grande amigo, tinha contactado mr. Owen e ele viera em meu socorro como um cavaleiro moderno.

No meu apartamento, os caixotes perfeitamente fechados e etiquetados tinham parecido enormes e opressivos. Aqui na casa, quase passavam despercebidos, eclipsados pelas meras proporções da arquitectura e pelas salas espaçosas e cheias de luz. Enchera-me de satisfação ter achado o interior da velha casa em tudo tão cativante como o exterior e adequado aos meus gostos tradicionais. Entrava-se pela porta principal para um grande átrio, apainelado a carvalho ricamente polido, século XVII, tinha declarado mr. Owen a um relance, e de excelente qualidade. Mesmo em frente, uma pesada escadaria de carvalho no centro do átrio subia vários degraus, detinha-se num patamar quadrado e descrevia então um ângulo de noventa graus para a esquerda, continuando a subida até ao primeiro andar. À esquerda e à direita do átrio, havia portas que abriam para a sala de estar e para o escritório respectivamente, enquanto à direita da escadaria um estreito corredor conduzia à cozinha. A sala de jantar, a cozinha e uma copa tradicional ocupavam a metade traseira do rés do chão, com largas e luminosas janelas que davam para a planície verde e ondulante com o seu tapete recente de precoces flores silvestres primaveris. Em cima havia quatro quartos. O maior, a todo o comprimento do lado norte da casa, sobre o escritório e a copa, fora a escolha óbvia para eu ocupar. Até tinha uma lareira que funcionava, bem como um armário de dimensão considerável encaixado no espaço por baixo das escadas para o sótão. Destinara o pequeno quarto das traseiras ao meu estúdio, e não me importara nada de deixar, entretanto, os dois quartos da frente por mobilar, servindo de espaços de arrumo até me instalar definitivamente. Entre o estúdio e o quarto, abrindo para o largo patamar, havia uma casa de banho completa: um autêntico luxo para uma casa mais antiga. Havia, naturalmente, fendas e rangidos, protestos das canalizações e a humidade esboroara o estuque em redor das janelas do andar de cima, mas não havia nada que não pudesse ser oportunamente reparado.

Tem aqui uma bela casa antiga, disse mr. Owen, expressando os meus próprios pensamentos, ao sentar-se nos caixotes ao meu lado, e passando-me um copo de esferovite. Construída na década de 1580, foi o que disse? Foi o que me disse o agente imobiliário, confirmei. Servi chá forte ao homem das mudanças e aos seus dois assistentes transpirados, e instalei-me no assento improvisado para saborear o meu chá fumegante. Infelizmente, não conheço muito bem a história da casa. Ah, a gente da terra há-de pô-la a par, com certeza, disse mr. Owen sabiamente. Estas casas antigas têm sempre um passado. Na maioria, interessante. Há-de ficar a saber mais a beber uma cerveja no pub do que a ler livros de História. Vou ter isso em mente. Os dois homens mais novos tomaram o chá num silêncio respeitoso, esperando pacientemente que mr. Owen acabasse de conversar e lhes fizesse sinal para retomarem o trabalho. Por fim, depois da segunda chávena de chá, ele levantou-se. Precisamente nesse momento, um estrondo terrível ressoou no átrio e eu pus-me de pé num salto. É só a porta de entrada, menina, disse um dos trabalhadores mais jovens. As dobradiças abrem para dentro, compreende, e o fecho não é muito resistente. Abre-se facilmente com uma forte rajada de vento.

Mr. Owen foi imediatamente examinar a porta, colocou uma capa de protecção no puxador interior para evitar mais estragos na parede apainelada e sugeriu que eu comprasse uma fechadura nova logo que possível. Todo o cuidado é pouco, foi o seu conselho paternal. Os três homens demoraram menos de uma hora a descarregar e a distribuir o resto dos meus haveres e às duas e meia dei por mim de pé à porta, dirigindo um último aceno à carrinha que se afastava e sentindo-me, pela primeira vez, muito insegura de mim mesma. E muitíssimo só. Fui de súbito atingida pela enormidade do que acabara de fazer, com uma força que nem o absoluto cepticismo do meu irmão nem os sermões mais brandos dos meus pais ao telefone haviam conseguido. Dissera a todos que podia trabalhar em Exbury tão bem como em Londres. Aliás, seria provavelmente mais produtiva em Exbury, longe das distracções da cidade. E comprar uma casa era, afinal, um investimento sólido. O facto de estar a trocar um ambiente familiar e um círculo de amigos estabelecido por uma comunidade de estranhos nunca me parecera muito importante. Até agora. Senti uma leve ponta de nostalgia pelo meu apartamento e pela minha vizinha do lado, Angie, com quem podia sempre contar para um café e dois dedos de conversa a meio da tarde». In Susanna Kearsley, Mariana, 1994, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-168-4.

Cortesia de EASA/JDACT

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