sábado, 14 de agosto de 2021

Labirinto. Kate Mosse. «Mais cedo, ela reparou em alguma coisa cintilando debaixo de uma pedra grande, encostada na lateral da montanha, arrumada e posicionada como se houvesse sido posta ali pela mão de um gigante»

Cortesia de wikipedia e jdact

Segunda-feira, 4 de Julho de 2005

«(…) Um único filete de sangue escorre pela parte interna muito pálida do braço dela, como uma costura vermelha num tecido branco. De início, Alice pensa que é só uma mosca e não liga. Numa escavação, os insectos são ossos do ofício, e por algum motivo há mais moscas no alto da montanha onde ela está trabalhando do que na escavação principal mais abaixo. Então uma gota de sangue pinga sobre a sua perna nua, explodindo como um fogo de artifício no céu em noite de ano-novo. Dessa vez ela olha e vê que o corte na parte interna do seu cotovelo abriu de novo. É uma ferida funda, que não quer sarar. Ela dá um suspiro e aperta mais contra a pele o curativo. Em seguida, como não há ninguém por perto para ver, lambe a mancha vermelha no próprio pulso. Fios de cabelo, claros como açúcar queimado, soltaram-se debaixo do seu boné. Ela os ajeita atrás das orelhas e enxuga a testa com o lenço, antes de apertar outra vez o rabo de cavalo na nuca. Desconcentrada, Alice se levanta e estica as pernas esguias, levemente queimadas de sol. Vestindo uma calça, jeans cortada, uma camiseta branca justa e sem mangas e um boné, ela mais parece uma adolescente. Antigamente se importava com isso. Agora, à medida que vai ficando mais velha, entende as vantagens de parecer mais jovem do que de facto é. Os únicos toques de elegância são seus delicados brincos de prata em forma de estrelas, que reluzem como paetês. Alice desenrosca a tampa de seu cantil. A água está morna, mas a sede é tanta que ela não liga e sorve longos goles. Lá em baixo, o calor forma uma névoa que cintila sobre o asfalto esburacado da estrada. Por cima dela, o céu tem um azul infinito. As cigarras prosseguem seu coro incessante, escondidas na sombra da grama seca. É a primeira vez que Alice visita os Pirenéus, embora se sinta praticamente em casa ali. Já lhe disseram que, no Inverno, os cumes pontiagudos dos Montes Sabarthès ficam cobertos de neve. Na Primavera, delicadas flores cor-de-rosa, lilases e brancas surgem de seus esconderijos nos enormes rochedos. No início do Verão, os pastos ficam verdes e salpicados de botões de ouro. Agora, porém, o sol achata a Terra, subjugando-a, transformando os verdes em marrom. É um lugar bonito, pensa ela, mas de certa forma inóspito. Um lugar de segredos, que já viu coisas demais e escondeu coisas demais para poder estar em paz consigo mesmo.

Na sede do acampamento, mais abaixo na encosta, Alice pode ver os colegas em pé sob o grande toldo de lona. Com esforço, consegue distinguir Shelagh na roupa preta que a caracteriza. Fica surpresa que já tenham parado. E cedo demais para um intervalo, mas a verdade é que a equipe toda está meio desanimada. Cavar e raspar, catalogar e anotar, tudo isso é na maior parte do tempo um trabalho árduo e monótono, e até agora eles desenterraram poucas coisas que valham a pena a ponto de justificar seus esforços. Encontraram alguns fragmentos de antigos jarros e vasilhas da Alta Idade Média e uma ou duas pontas de lança do final do século XII ou início do XIII, mas certamente não acharam nenhum sinal do núcleo de povoamento paleolítico que é o foco da escavação. Alice sente-se tentada a descer para juntar-se aos amigos e colegas, e refazer seu curativo. O corte está ardendo, e suas batatas da perna estão doloridas de tanto ficar de cócoras. Os músculos de seus ombros estão tensos. Mas ela sabe que, se parar agora, perderá o pique. Se tudo der certo, sua sorte pode estar prestes a mudar.

Mais cedo, ela reparou em alguma coisa cintilando debaixo de uma pedra grande, encostada na lateral da montanha, arrumada e posicionada como se houvesse sido posta ali pela mão de um gigante. Embora ainda não consiga ver que objecto é aquele, nem sequer determinar seu tamanho, passou a manhã inteira cavando e acha que não vai demorar muito para conseguir alcançá-lo. Ela sabe que deveria chamar alguém. Ou pelo menos falar com Shelagh, sua melhor amiga, vice-directora da escavação. Alice não tem formação de arqueóloga; é só uma voluntária dedicando parte das suas férias de verão a alguma ocupação útil. Mas aquele é seu último dia completo na escavação, e ela quer provar seu valor. Se descer agora até à sede da escavação e admitir que pensa ter descoberto alguma coisa, todos vão querer participar, e não vai ser mais a sua descoberta». In Kate Mosse, Labirinto, Editora Suma de Letras, 2006, ISBN 978-857-302-768-6.

Cortesia de ESumafrLetras/JDACT

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