terça-feira, 10 de agosto de 2021

Umberto Eco. Idade Média. «… Universidade de Bolonha e que no século XIV também ali ensinava outra mulher, Novella d’Andrea, que era obrigada a cobrir o rosto com um véu para que a sua extraordinária beleza não distraísse os estudantes»

Cortesia de wikipedia e jdact

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A Idade Média não é sempre misógina

Os primeiros padres da Igreja manifestam um profundo horror à sexualidade, de tal modo que alguns recorrem à autocastração, e a mulher é sempre apontada como fomentadora do pecado. Esta misoginia mística está presente no mundo monástico medieval; basta recordar o trecho do século X em que Odo de Cluny diz: a beleza do corpo está toda na pele. Com efeito, se os homens, dotados da penetração visual interna como os linces da Beócia, vissem o que está sob a pele, a simples vista das mulheres seria nauseabunda: essa graça feminina é apenas banhas, sangue, humor e fel. Considerai o que se oculta no nariz, na garganta e no ventre: em toda a parte imundícies… E nós, que sentimos repugnância em tocar sequer com as pontas dos dedos o vomitado ou o esterco, como podemos desejar estreitar nos braços um simples caos de excrementos? E não seria necessário citar monges pudibundos, porque o mais feroz texto contra a mulher está em Corbaccio, de Giovanni Boccaccio, e em pleno século XIV. Mas a Idade Média é também a época da mais apaixonada glorificação da mulher, quer pela poesia cortês quer pelos cultores do novo estilo, e pensamos na divinização que Dante faz de Beatriz. Não é apenas na imaginação poética e laica, no mundo monástico recordamos a importância de figuras como Hildegarda de Bingen ou Catarina de Sena, que se relacionam com os soberanos e são escutadas pela sua sabedoria e pelo seu fervor místico. Heloísa tem uma relação carnal com o seu mestre Abelardo quando, ainda menina e não consagrada à vida religiosa, frequenta a universidade, despertando a admiração dos colegas masculinos. Diz-se que no século XII Bettisia Gozzadini ensinava na Universidade de Bolonha e que no século XIV também ali ensinava outra mulher, Novella d’Andrea, que era obrigada a cobrir o rosto com um véu para que a sua extraordinária beleza não distraísse os estudantes.

E nem os místicos conseguem furtar-se ao fascínio feminino, pelo menos quando tinham de comentar o Cântico dos Cânticos, que, por muito que se queira interpretar alegoricamente, nunca deixa de ser uma explícita celebração da beleza carnal. O Cântico deve ter perturbado o sono de muitos devotos exegetas bíblicos, forçados a admitir que a formosura feminina pode evocar a graça interior de que é sinal. E, ainda comentando o Cântico com cândida e composta seriedade sob a qual é difícil não suspeitar alguma inconsciente malícia, Gilbert Hoyland define as justas proporções que os seios femininos deviam ter para que fossem agradáveis. O ideal físico que emerge mostra-se muito próximo das figuras de mulheres representadas nas miniaturas medievais com apertados corpetes tendentes a comprimir e erguer os seios: são Belos, na verdade, os seios ligeiramente elevados e moderadamente túmidos, contidos mas não comprimidos [repressa sed non depressa, que constitui, francamente, uma pequena obra-prima de retórica monástica], suavemente ligados e não livres de tremular (Sermones in Canticum).

Temos, naturalmente, de recordar que a Idade Média dura mil anos e que nestes mil anos, como de resto no breve lapso do nosso tempo, é possível encontrar manifestações de pudor, outras de uma verdadeira neurose sexofóbica e outras, ainda, de descontraída conciliação com a natureza e a vida.

A Idade Média não foi a única época iluminada por fogueiras

Queimava-se gente na Idade Média e não só por motivos religiosos, mas também por motivos políticos, pensemos no julgamento e condenação de Joana d’Arc. Ardem hereges como frei Dolcino e ardem criminosos como Gilles Rais, que assassinou e estuprou muitos meninos (falava-se de 200). Convém lembrar que 108 anos depois do fim oficial da Idade Média será queimado Giordano Bruno no Campo dei Fiori e que o processo contra Galileu data de 1633, passados 141 anos desde o início da Idade Moderna». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN  978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,