segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Georges Bataille. O Erotismo. «… este aspecto tinha respondido simplesmente à preocupação de dar uma solução ao problema da repartição das mulheres disponíveis através da doação. Se continuarmos a procurar um sentido…»

jdact e wikipedia

A proibição do incesto

«(…) Nas sociedades arcaicas, a classificação das pessoas de acordo com a sua relação de parentesco e a determinação dos casamentos proibidos transformou-se, às vezes, numa verdadeira ciência. O grande mérito de Claude Lévi-Strauss é ter encontrado nos meandros infinitos de estruturas familiais arcaicas a origem de particularidades que não podem derivar unicamente dessa vaga interdição fundamental que levou geralmente os homens à observação de leis opostas à liberdade animal. As disposições referentes ao incesto responderam primeiramente à necessidade de desencadear nas regras existentes uma violência que, não sendo dominada, poderia ter perturbado a ordem à qual a colectividade desejava obedecer. Mas, independentemente dessa determinação fundamental, leis equitativas foram necessárias para distribuir as mulheres entre os homens; tais disposições, estranhas e precisas, se compreendem ao examinarmos o interesse de uma distribuição regular. O interdito actuava como uma regra qualquer, mas as regras foram estabelecidas para responder a preocupações secundárias, que nada tinham a ver com a violência sexual e com o perigo que ela apresentava para a ordem racional. Se Lévi-Strauss não tivesse mostrado qual a origem de um determinado aspecto da regra dos casamentos, não haveria nenhuma razão para não procurar aí o sentido da proibição do incesto. Segundo ele, este aspecto tinha respondido simplesmente à preocupação de dar uma solução ao problema da repartição das mulheres disponíveis através da doação. Se continuarmos a procurar um sentido para o movimento geral do incesto, que proíbe a união física entre parentes próximos, devemos pensar primeiramente no sentimento forte que persiste. Este sentimento não é fundamental, mas as comodidades que decidiram modalidades do interdito não eram assim tão simples. Parece natural, num primeiro momento, procurar uma causa a partir de formas aparentemente muito antigas. Uma vez aprofundada, a pesquisa revela o contrário. A causa revelada não pôde ordenar o princípio de uma limitação, mas sim utilizar o princípio para fins ocasionais. Devemos relacionar o caso particular à totalidade das interdições religiosas que conhecemos e não deixamos de sofrer. Existe em nós algo de mais firme que o horror ao incesto? (A ele acrescento o respeito aos mortos, mas só posteriormente mostrarei essa unidade primeira onde o conjunto dos interditos aparece relacionado). É inumano aos nossos olhos unir-se fisicamente ao pai, à mãe, e igualmente ao irmão ou à irmã. A definição dos que não devemos conhecer sexualmente é variável. Mas, sem que a regra tenha sido jamais definida, não devemos em princípio nos unir aos que viviam no ambiente familiar no momento em que nascemos; há, desse lado, uma limitação que seria mais clara, sem dúvida, se outros interditos variáveis, arbitrários aos olhos dos que não se submetem a ele, não estivessem aí confundidos. No centro, um núcleo bastante simples, bastante constante; em volta, uma mobilidade complexa, arbitrária, caracterizam esse interdito elementar: quase por toda parte se encontra o núcleo sólido, e ao mesmo tempo a mobilidade fluida que o cerca. Essa mobilidade dissimula o sentido do núcleo. O núcleo não é ele próprio intangível, mas, ao abordá-lo, percebemos melhor o horror primeiro, que se repercute ao acaso, algumas vezes de acordo com a comodidade. Trata-se sempre essencialmente de uma incompatibilidade da esfera onde domina a acção tranquila e moderada com a violência do impulso sexual. No decorrer dos séculos, as regras que daí decorrem podiam ser definidas sem um formalismo variável e arbitrário?» In Georges Bataille, O Erotismo, 1957/1968, tradução de João Bernard Costa, L&PM Editores, 1987, Editora Antígona, Lisboa, 1988, ISBN 978-972-608-018-3.

Cortesia de L&PM/E Antígona/JDACT

Erotismo, Filosofia, Georges Bataille, JDACT, Literatura,