segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Os Anagramas de Varsóvia. Richard Zimler. «Que diabo nós vamos fazer com uma periquita aleijada? Gloria refugiou-se com o pé-coxinho no canto mais afastado da caixa…»

 

jdact e wikipedia

 «(…) Adam trouxe Gloria para casa dentro de uma caixa de sapatos na terceira semana de Janeiro de 1941, e a lição que ela nos deu foi que mesmo as criaturinhas frágeis como os sonhos podem desequilibrar várias vidas. Quando levantou a tampa da caixa, disse-nos, a mim e à mãe, que o gerente da loja de animais Roth lhe dera a periquita de graça. Bastou que ele apontasse com o dedo para percebermos porquê: a pata esquerda de Gloria estava transformada numa massa cinzenta e granulosa pendurada por um fio, o exemplo perfeito dos males causados pelo câncer. Valha-me Deus, lamentou-se Stefa, espantada, para a pobre criatura. Que diabo nós vamos fazer com uma periquita aleijada? Gloria refugiou-se com o pé-coxinho no canto mais afastado da caixa, tentando desajeitadamente criar alguma distância entre si e a minha sobrinha. Era azul-claro, com um bico amarelo vivo e asas esguias, tingidas de preto e branco. Devia ter sido um lindo pássaro, mas seu peito estava crivado de feridas em carne viva. Ela não consegue voar, informou-nos Adam, cabisbaixo. Uma das asas não funciona. Por isso quis adoptá-la. Vai fazer cocó por todo o lado!, declarou Stefa, as mãos na cintura. Se não lhe dermos de comer, não faz cocó nenhum, gracejei. O menino arregalou os olhos como se eu fosse um traidor, e em seguida mostrou-me a língua. Respondi-lhe na mesma moeda e tentei puxar uma orelha sua, mas ele se abaixou, escapando-me.

Adam, meu querido, berrou Stefa, e aquele querido era um sinal para ele ficar alerta, este pobre pássaro está sem dúvida alguma coberto de piolhos e vai espalhar doenças, por isso vái-se livrar imediatamente dele, e depois lave as mãos! Minha sobrinha tinha começado a recorrer a uma oratória de frases misturadas umas nas outras para poder convencer o filho. Na esperança de conseguir uma trégua, eu disse: Eu faço uma gaiola. Ah, como aquelas estantes tortas que o tio fez!, observou Stefa, apontando para as minhas construções raquíticas. E me deu seu sorriso sarcástico, que tinha o efeito de um pontapé no peito. Vamos comprar uma gaiola interrompeu Adam, e aquele menino impertinente tirou 2 zlotys do bolso com um sorriso atrevido. Onde conseguiu isso?, exigiu saber a mãe, certa de que o filho se transformara num criminoso. Em apostas de cavalos!, gritou ele. E talvez fosse esse o seu verdadeiro desejo. Não! Sério?, perguntei. Faço os deveres de casa de matemática para Feivel, Wolfi e alguns dos outros garotos.

Uns dias mais tarde, Gloria se mudou para uma gaiola cónica que Izzy fez para nós com uma base de madeira e tiras de arame. Soldou uma suástica na cúpula, porque provocar Stefa era a garantia de um número de vaudeville que eles tinham criado ao longo dos anos. Izzy, não tem graça nenhuma!, disse-lhe ela, o que o fez sorrir triunfante. O que você não entende, Stefa, meu amor, respondeu-lhe ele, é que a loucura e a magia são inseparáveis. A suástica vai impedir que os nazis confisquem Gloria quando criarem uma lei contra os animais domésticos judeus». In Richard Zimler, Os Anagramas de Varsóvia, 2009, Editora Record, 2010, ISBN 978-850-109-966-2, Porto Editora, Porto, 2015, ISBN 978-972-004-728-1.

Cortesia de ERecord/PortoEditora/JDACT

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