segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Umberto Eco. Idade Média. «… frei Dolcino e os seus sequazes, e na origem de tais movimentos estão sempre as premissas fundamentais sobre o fim do mundo a breve prazo, o advento de uma era do Espírito Santo e a identificação do pontífice e dos príncipes da Igreja com o Anticristo»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Idade Média não foi apenas uma época de ortodoxia triunfante.

«(…) O que na Idade Média torna fascinante o Apocalipse é a ambiguidade substancial do seu capítulo XX. Interpretado à letra, este capítulo diz que, a certo ponto da história da humanidade, Satanás fica preso por mil anos. Durante todo o período em que está preso, realiza-se na Terra o Reino de Cristo. Depois, o Diabo é libertado por um certo tempo e, finalmente, de novo vencido. Nessa altura, Cristo dará início, no seu trono, ao Juízo Universal, a história terrena terminará (e já estamos no começo do capítulo XXI) e haverá um novo Céu e uma nova Terra, ou seja, o advento da Jerusalém Celeste. Numa primeira leitura, devemos esperar uma segunda vinda do Messias e mil anos de idade do ouro (prometida, por outro lado, por muitas religiões antigas) e um preocupante regresso do demónio e do seu falso profeta, o Anticristo (como a tradição tenderá gradualmente a chamar-lhe), e finalmente o Juízo e o fim dos tempos. Mas Agostinho sugere outra leitura: o milénio representa o período que vai da Encarnação ao fim da História e é, pois, o período que os cristãos já estão a viver. Neste caso, a espera pelo milénio é substituída por outra; a espera pelo regresso do demónio e, depois, pelo fim do mundo.

A história do Apocalipse na Idade Média move-se entre estas duas possíveis leituras, numa alternância de euforia e disforia e com um sentimento de perene expectativa e tensão. Porque ou Cristo chega para reinar durante mil anos na Terra ou vem para pôr termo aos actuais mil anos; mas, em qualquer caso, virá. O resto são discussões sobre os tempos do calendário místico. Todas as heresias medievais, especialmente as que nascem não só de um impulso religioso como também da impaciência acerca das injustiças da sociedade, têm uma raiz milenarista. Enquanto as inquietações anteriores ao ano 1000 eram suportadas passivamente por uma humanidade abandonada a si própria, no novo milénio a sociedade organiza-se e as cidades definem-se como comunas independentes; desenha-se toda uma gama de diferenças sociais: ricos, poderosos, guerreiros, clero, artífices, camponeses e massas sub-proletárias. Estas massas começam a ler o Apocalipse de um modo activo, como se ele dissesse respeito a um futuro melhor que elas obtivessem com um empenhamento directo. Não são movimentos sociais organizados para fins exclusivamente económicos, mas reacções anárquico-místicas, com cambiantes imprecisas em que rigorismo e devassidão, sede de justiça e banditismo vulgar se reúnem sob uma matriz visionária comum. Estes movimentos manifestam-se, principalmente, em áreas gravemente envolvidas num processo de rápida mutação económica e social. Camponeses sem terra, operários não qualificados, mendigos e vagabundos formam um elemento instável; qualquer estímulo perturbante e excitante, o chamamento para uma cruzada, uma peste, uma escassez, provocava reacções violentas e suscitava habitualmente a formação de um grupo que ficava à espera, com frequência não meramente passiva, de transformações radicais sob a chefia de um guia carismático.

Deste modo temos, século a século, grupos de homens irrequietos e violentos, de entusiastas dispostos ao extremo sacrifício, agitados por esperanças mirabolantes. O milenarismo, com a expectativa de uma idade de ouro, é a forma medieval da crença no advento de uma sociedade sem classes, em que não haja reis, príncipes nem senhores. E assim, por via dos ecos apocalípticos, se inserem tendências populisto-comunistas nos mais diversos movimentos do povo, de Cola di Rienzo a Savonarola. Seguindo a pregação milenarista de Gioacchino da Fiore, e em espírito apocalíptico, apoderam-se da palavra joaquimita os rigoristas franciscanos, os chamados irmãozinhos, e joaquimitas serão no século XIV frei Dolcino e os seus sequazes, e na origem de tais movimentos estão sempre as premissas fundamentais sobre o fim do mundo a breve prazo, o advento de uma era do Espírito Santo e a identificação do pontífice e dos príncipes da Igreja com o Anticristo». In Umberto Eco (organização), Idade Média, Bárbaros, Cristãos, Muçulmanos, Publicações dom Quixote, 2010-2011, ISBN  978-972-204-479-0.

Cortesia PdQuixote/JDACT

JDACT, Umberto Eco, Idade Média, Cultura e Conhecimento,