sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Navegações Portuguesas: Parte VII. Guias Náuticos

Cortesia de Instituto Camões
Com a devida vénia a Luís Jorge S. Matos e ao Instituto-Camões, publico algumas palavras.


A designação de Guias Náuticos e a sua definição têm o cunho do historiador Luís Albuquerque, que pela primeira vez a eles se refere numa pequeno artigo publicado em Abril de 1960, na Revista da Universidade de Coimbra, com o título «O primeiro guia náutico português e o problema das latitudes na marinharia dos séculos XV e XVI». Admito como provável que o ambiente de discussão historiográfica que rodeou as comemorações henriquinas, tenha admitido e aceite a designação, de que não conheço qualquer contestação e que é corroborada por alguns pares do autor.
O texto em causa – como o próprio indica – é «tirado da introdução escrita para uma edição comentada dos guias náuticos de Munique e Évora» que só viriam a ser publicados em 1965. Mas antes ainda desta publicação, o mesmo autor escreveu um pequeno (mas denso) artigo no Dicionário de História de Portugal (dirigido por Joel Serrão), onde anuncia a breve edição comentada dos textos de Évora e Munique, fornecendo mais alguns dados sobre o que lhe parece poder ser a base de definição de um Guia Náutico.
Trata-se, no seu essencial, de um compêndio onde constam noções de geometria esférica – neste caso uma tradução parcial e adaptada do Tratado da Esfera de Sacrobosco – a apresentação de tábuas solares, destinadas ao cálculo de latitudes pela (não vale a pena discutir os pormenores que diferem de um para outro texto), um regimento do Norte, um importantíssimo regimento das léguas, indispensável à compreensão da variação dos graus de paralelo com a latitude do lugar, e ainda umas listas de longitudes de portos frequentados pelos portugueses, numa das obras apenas até ao Equador, mas na outra até ao Oceano Índico com acrescentos de locais do Extremo Oriente.
Cortesia de Instituto Camões
Pouco importa discutir agora as questões técnicas que envolvem os dois textos portugueses, aceitando a ideia de que foram reunidos e publicados com o objectivo explícito de concorrerem na formação técnica dos pilotos, dada a importância desse cargo. Albuquerque identifica-lhes este objectivo que parece não ter tido contestação, numa altura e que seriam fáceis as controvérsias, mantendo a designação por toda a década de sessenta (corroborado por Armando Cortesão no prefácio da Edição de 1965), e reiterando-a aquando da publicação da Arte de Navegar, de Manuel Pimentel em 1969. Neste último texto encontramos uma introdução onde os três colaboradores anuem no facto de que se está na presença de mais um livro que podia ter sido chamado de Guia Náutico, apesar de que a técnica de navegação e a estrutura destes mesmos compêndios tinha evoluído, o que é próprio de duzentos anos de aprendizagem.

Cortesia de crb.ucp
Sobre os primeiros Guias Náuticos tinham passado, entretanto, todo o século XVI, onde proliferaram textos práticos como compilações recolhidas de forma aleatória e acrescentadas ou corrigidas por pilotos mais aplicados ou atentos. Texto que, de um modo ou de outro, se chocam com a própria concepção de ensino da náutica (Pedro Nunes), que preconiza uma sólida formação teórica em matemática, exigindo uma compreensão da esfera para um manuseamento correcto das cartas e delineamento das derrotas.
É uma discussão que também não cabe aqui analisar, mas importa referir que o Tratado da Esfera (tradução de Sacrobosco), publicado em 1537 por Pedro Nunes, incluindo o primeiro capítulo da Geografia de Ptolomeu, e mais alguns comentários e textos explicativos sobre derrotas e cartas de navegar, tem a estrutura de um Guia Náutico e, de certo modo, vem na continuidade da sua nomeação para o cargo de Cosmógrafo-Mor, em 1529. Não sabemos até que ponto conseguiu lançar as sementes de uma seara que desejava fosse vastíssima, mas é verdade que não teve grande êxito a curto prazo. Segundo as críticas de quem navegava, os seus estudos e prédicas eram demasiado teóricas, inacessíveis aos parcos conhecimentos dos pilotos, que se revoltavam inconformados com tanta coisa complexa que tinham de estudar e aprender. No fundo, quando chegavam a altura de fazer o seu exame, já tinham muitos anos de mar, e não entendiam que a compreensão dos conceitos lhes daria outra dimensão de actuação e a possibilidade de descobertas e soluções que se tornavam impossíveis na rotina que aceitavam.

Cortesia de crb.ucp
A revolução do ensino da náutica parece só ter ocorrido pelos anos 90 do século XVI, e pela acção de João Baptista Lavanha que em 1595 publica uma obra intitulada Regimento Náutico, com o objectivo expresso de dar formação aos pilotos e servir de guia na sua acção profissional. Trata-se de uma compilação conhecimentos de geometria e do movimento dos céus, sem as medições rigorosas que exigiam os matemáticos e cosmógrafos, aligeiradas para simplificar as contas de quem andava a bordo. Na entrada do Regimento de Lavanha, o próprio autor pede desculpa aos matemáticos dos erros que vão encontrar, justificando-o com a prática e as necessidades dos pilotos, que assim aprendem o indispensável ao exercício da sua profissão. O texto tem, indubitavelmente, um carácter inovador, mas é de justiça referir as semelhanças estruturais com alguns dos que, há alguns anos, vinham sendo publicados em Castela, nomeadamente os de Pedro de Medina e Rodrigo Zamorano.
Todos estes caberiam dentro da designação de Guias Náuticos, se, entretanto, não se fosse popularizando o título de Regimento Náutico (de origem espanhola) e, mais tarde, a Prática da Arte de Navegar ou, simplesmente, Arte de navegar que vão ser os títulos das obras dos cosmógrafos Luís Serrão Pimentel e Manuel Pimentel. Estes últimos dão continuidade ao processo encetado por Manuel Figueiredo – o cosmógrafo que substituiu temporariamente Lavanha no princípio do sec. XVII – que em 1606 publicou a Hydrographia, Exame de Pilotos, no qual se contem as regras Que todo o Piloto deue guardar em suas nauegações, assi no Sol, variação da agulha ... etc.. Talvez que seja a primeira obra escrita por um cosmógrafo, com um intuito oficial directamente relacionado com formação e apreciação dos pilotos, correspodendo plenamente à definição de Luís Albuquerque para um Guia Náutico. Nele se encontram as regras da esfera, a geometria necessária, o uso das tábuas astronómicas, cálculos de altura de marés e muitas outras normas indispensáveis a uma navegação segura, agora acrescentadas por um conjunto vasto de roteiros. Um vade-mecum para qualquer piloto, a que deveria acrescentar-se a experiência adequada para bem ler e interpretar os sinais do mar, e usar as capacidades dos navios.

Cortesia de catalogue.nla.gov.au
Apenas como comentário final ao desenvolvimento que tiveram os primitivos Guias Náuticos - depois Regimentos Náuticos e livros de Arte de Navegar – julgo interessante salientar que o carácter teórico ou generalista da formação parece acentuar-se cada vez mais, sendo notório com a passagem ao século XVIII. O conteúdo do livro de Manuel Pimentel – que já não é acompanhado de roteiros – segue uma linha de saber específico que obrigava ao estudo da matemática e geometria, cada vez menos substituíveis pela pura prática de mar. Na verdade, os pilotos já nada tinham a ver com os ofícios mecânicos medievais, a sua formação caminhava para uma institucionalização absoluta, desenhando-se progressivamente a formação global e integrada do oficial da marinha e do piloto. No Tratado Completo da Navegação publicado em 1779 por Francisco Xavier do Rego, esta vertente é ainda mais nítida. A definição que dá no princípio do primeiro capítulo é paradigmática do espírito que atravessa toda a obra: «He a navegação uma sciencia que ensina a governar hum Navio no mar, e a levallo a qualquer Porto». Ou seja, a formação do piloto deixa de se cingir à aprendizagem concreta de umas quantas técnicas que lhe permitem trabalhar numa carreira específica, passando a ser vista como a aprendizagem de conceitos generalizáveis, que requerem o domínio de alguns conceitos científicos, e são aplicáveis em todas as circunstâncias e caminhos do mar. E a esta ideia se adaptam os novos Guias Náuticos, como não podia deixar de ser. In Luís Jorge Semedo de Matos, Instituto Camões.

Bibliografia:

  • ALBUQUERQUE, Luís, Curso de História da Náutica, Coimbra, Almedina, 1972;

  • ALBUQUERQUE, Luís, Os Guias Náuticos de Munich e Évora, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1965;

  • FIGUEIREDO, Manuel de, Hydrographia, Exame de Pilotos,... etc., Lisboa, Vicente Alvarez, 1614;

  • PIMENTEL, Manuel, Arte de Navegar, Comentada e anotada por Armando Cortesão, Fernanda Aleixo e Luís Albuquerque, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1969.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT