domingo, 8 de maio de 2011

Mamé. Feliciano Falcão, Memória Viva: Parte II. «Esta Saudade... Juntos recordámos ainda as tardes passadas debaixo do velho castanheiro, o odor dos mangericos à entrada da porta, a resina perfumada das estevas, e a aurora a entrar leve pelas janelas, a despertar-lhe sempre desvarios com o canto dos rouxinóis...»

Cortesia defalcaodejade

«Era uma pessoa pura como o canto das cigarras, apaixonada como a cor dos poentes, capaz de se dar por completo como só as crianças se dão. Uma vez escreveu-me, numa carta, uma frase do poeta: «É preciso arder. E não só em versos». Amar a vida com furor, procurar os limites de tudo, ter loucura, euforia...
Para o meu pai, a caminhada da vida valia a pena, nem que fosse só para apreender o divino dentro dela, pois só os homens eram deuses, dizia ele.

Nas nossas conversas e cartas, voltava sempre a falar-me da sua infância e adolescência camponesas, das lagartixas nos muros da sua casinha tão simples no campo, das andorinhas nos beirais, do colorido das papoilas e dos olhos azuis do seu pai, serenos e lúcidos. E sempre da sua ânsia de uma sociedade sem classes, sem desigualdades, do desejo de levar a todos um coral de máxima emoção e felicidade, no seu grito de protesto perante a apatia e indiferença dos outros.


jdact
Disse-me um dia que tinha feito de divisa para si próprio uma máxima de Terêncio, que o tinha impressionado muito e que era mais ou menos: «Nada do que é humano me é alheio». Verdadeiramente nada lhe era alheio, porque ele tudo sentia. Sem atropelar ninguém, ele dominava-nos a todos. Era a figura superior, o Mestre, tão certa a sua percepção de ética e justiça, tão profundo o seu saber, tão luminoso o seu convívio! Os nossos encontros prolongavam-se, muitas vezes, até ao amanhecer, ouvindo a sua música preferida, ouvindo Beethoven, que o fazia chorar.
O seu pasmo. O silêncio. A noite. E a sua mudez a senti-la, sofregamente, de cigarro em punho...

Também nos seus últimos dias de despedida, na nossa casa, tão longe dos campos dourados, da planície batida pelo sol, do seu amado medronheiro, da roseira com rosinhas minúsculas, que ele tanto gostava de colher para nos oferecer, dos cravinhos selvagens, que ele comigo procurava, o meu pai tentou deixar-me a sua «herança», o seu «Mistério»:
  • - Sabes, a vida é uma coisa maravilhosa quando nos decidimos por ela... Existe uma condição, sim, - continuou - que as experiências, inesperadamente más ou boas, não nos paralisem ou sufoquem, que nos permitam chegar aos altos, onde se cobre a visão larga!


jdact
A sua resistência ao absurdo e medíocre, à vivência vegetal, a sua denúncia do imobilismo de pedra, a sua procura da verdade, do real escondido, manteve-as até ao fim. - Porque nós vivemos uma só vez e num sopro desaparecemos e temos de gritar a nossa riqueza e a nossa pureza, a pureza onde a vida se nos espraia no que tem de sério e essencial - defendia.
- Lembras-te? - perguntava. Sim, eu lembrava-me. E vejo ainda hoje a nudez do seu olhar atento na noite, a sua mão grande a dar-me um belisco na face, ouço-o dizer: «Tu partiste para longe, apenas a paisagem se alterou. Algumas pessoas levam, ao partirem, o mundo inteiro com elas...».
Assim aconteceu com o meu pai. Apenas a paisagem se alterou. O mundo inteiro, esse levou-o ele consigo, quando partiu. A nós deixou-nos toda esta saudade». In Feliciano Falcão, Memória Viva, António Ventura, Edições Colibri, C. M. de Portalegre, 2003, ISBN 972-772-440-X.

Cortesia de Edições Colibri/JDACT