terça-feira, 24 de maio de 2011

Teófilo Braga: Bocage. Sua Vida e Época Literária. «Como Camões; ele teve uma mocidade culta mas dissipada; como Camões, um generoso impulso o fez seguir a vida das armas e ir militar em Goa; como ele, foi perseguido na metrópole das colónias indianas e refugiou-se em Macau; por último, ao chegar à pátria viveu em luta com os poetas seus contemporâneos, e, como a Camões, também lhe roubaram os manuscritos dos seus versos»

Cortesia de catedral

«O povo português só conhece o nome de dois poetas, Camões e Bocage; não porque repita os seus versos, como os gondoleiros de Veneza as estâncias de Tasso, ou os Romanos as cançonetas de Salvador Rosa, porque entre nós deu-se uma constante separação entre o escritor e o povo mas porque de Camões sabe a lenda do seu amor pela Pátria, e de Bocage repete uma ou outra anedota picaresca. No entanto, a aproximação instintiva destes dois nomes infunde um sentimento que leva a procurar se existe alguma verdade nesta relação, que uma vez determinada, será um seguro critério para avaliar Bocage. Assim, como os que procuram relações exteriores e casuais sobre as frequentes analogias de Francisco com Jesus escreveram o «Liber Conformitatum», assim também entre Bocage e Camões existe uma conformidade de situações na vida, que em certa forma deviam imprimir aos seus génios uma fisionomia análoga às idênticas impressões. O grande épico era descendente de um «solar da Galiza», e Bocage era oriundo de uma «família francesa».

Desenho de Roberto Nobre
Cortesia de nestahora

Está hoje comprovado que o génio de uma raça só chega a ser bem compreendido õ expresso pelo elemento estrangeiro que se assimilou a ela. Na renovação do Romantismo em Portugal, coube a Garrett a missão iniciadora, e Garrett era descendente de uma «família inglesa» dos Açores. Bocage, na realidade, representa um espírito atrofiado por um meio intelectual estreitíssimo, verdadeira imagem do espírito nacional vigoroso e fecundo, cretinizado pelo obscurantismo religioso e pelo cesarismo monárquico. É o representante mais completo do século XVIII em Portugal com o seu erotismo e bajulação áulica, com a galantaria improvisada e com os lampejos revolucionários; Camões representava o espírito da grande Renascença, e a consciência histórica da Nacionalidade. Diferem e estão a grande distância por isto. Bocage, sempre enfatuado da sua personalidade, ao comparar os seus desastres com os de Camões, prostra-se com uma modéstia sublime.

Desenho de Francisco Pastor
Cortesia de nestahora

Como Camões; ele teve uma mocidade culta mas dissipada; como Camões, um generoso impulso o fez seguir a vida das armas e ir militar em Goa; como ele, foi perseguido na metrópole das colónias indianas e refugiou-se em Macau; por último, ao chegar à pátria viveu em luta com os poetas seus contemporâneos, e, como a Camões, também lhe roubaram os manuscritos dos seus versos; Camões morre na indigência, celibatário e doente, à sombra de sua velha mãe, e Bocage,.em iguais circunstâncias, acompanhado por uma pobre irmã. Tudo isto torna de uma luminosa verdade o soneto que começa:

Camões, grande Camões! Quão semelhante
Veio o teu fado ao meu, quando os cotejo...

A mesma relação estabelecida pelo vulgo, também foi aqui pressentida por Bocage. Era uma organização igualmente impressionável e fecunda, mas o século era mais decaído, a tradição nacional estava apagada, a missão do poeta estava reduzida a ser-se comensal de uma nobreza estulta, devota e corrompida». In Bocage, Apólogos, Adivinhações e Epigramas, Publicações Europa-América, edição nº 40889/3571.

Cortesia de Publicações Europa-América/JDACT