quarta-feira, 21 de outubro de 2015

A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal. Maria M. Braga. «Em Portugal vi eu já/ Em cada casa pandeiro/ E gaita em cada palheiro;/ E de vinte anos a cá/ Não há hi gaita nem gaiteiro,/ A cada porta hum terreiro,/ Cada aldeia dez folias, /Cada casa atabaqueiro…»


Cortesia de wikipedia

Os gaiteiros
«(…) Estas sátiras não deixaram de ser vistas com agrado num mundo goliardesco onde a virtude convivia descontraidamente com o pecado. Ao lado da javali gárgula de Plasencia encontra-se um alegre campónio muito entusiasmado a tocar a gaita-de-foles. Tocar gaita é a expressão que em português melhor explicita o sentido de provocação sexual a ela associado. Nas representações artísticas predominam os porcos e os macacos que se dedicam a este exercício musical. O porco ou javardo, significa literalmente essa gula ou luxúria depravada. Já Santo Isidoro de Sevilha o referia nas Etimologias: os porcos são imundos porque se revolvem e sujam na terra à procura de alimentos. Na obra Hortus Sanitatis (1485), inspirada em Aristóteles, Jehann von Cube desenvolve a ideia da associação do porco à luxúria, referindo a precocidade sexual do animal que aos oito meses já está apto a copular. Os exemplários acrescentam os mesmos atributos aos macacos e associam-nos ao gosto pela bebida e a todo o tipo de gula e prazeres carnais. Representam-se com este sentido em cortejos festivos, tocando instrumentos musicais, a par de sátiros, centauros e outras figuras humanas bestializadas ou em duetos e provocações recíprocas com homens selvagens. Podem observar-se no cadeiral de Santa Cruz de Coimbra, em idênticas iconografias por vezes mais explicitamente licenciosas como as de Oviedo, mas também no retábulo da Sé Velha de Coimbra numa disputa com selvagem, ou no portal da Sé de Lamego,em paralelo com representações mais realistas de felatio. O termo gaiteirice prende-se com estes costumes e vemo-lo aplicado à luxúria desbocada dos loucos, bem como a de outras práticas licenciosas a que muitos religiosos também se entregavam. A gaita-de-foles parece ter esse específico significado sexual. Arcipreste de Talavera, na recolha de refrães que incluiu no El Corbacho (1438), a propósito de frades e seculares dados a assediar a mulher do próximo, utiliza a frase: dignos por sus fechos de tañer la cornamusa.
Os próprios tocadores de gaita-de-foles estão associados às festas, ao riso saudável e desbragado das patuscadas populares acompanhadas de bebida e muita outra diversão. Gil Vicente e Camões referem-no a propósito dos tempos soturnos trazidos pela Inquisição (maldita). A apagada e vil tristeza que já aparecera no Triunfo do Inverno vicentino: Em Portugal vi eu já/ Em cada casa pandeiro/ E gaita em cada palheiro;/ E de vinte anos a cá/ Não há hi gaita nem gaiteiro,/ A cada porta hum terreiro,/ Cada aldeia dez folias, /Cada casa atabaqueiro; /E agora Jeremias/ hé nosso tamborileiro./ Só em Barcarena havia/tambor em cada moinho,/ E no mais triste ratinho/ S’enxergava uma alegria (Gil Vicente, Triunfo do Inverno). Gaiteirices significam também amores fora de época. Gil Vicente não os poupou nas suas sátiras: Moça: Já perto sois de morrer. Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais? Velho: Tanto sois mais homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d’agora vai vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os escora. Mas um velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho! Moça: Oh miolo de coelho mal assado! (...) ...e nem a velha mulher ciumenta escapa á troça. Velho: Estas velhas são pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais homem as afaga, tanto mais são endiabradas! (Gil Vicente, O Velho da Horta).
A gaita de foles, símbolo da escatologia sexual da sociedade é também o instrumento do louco, das festas carnavalescas, dos bufões chocarreiros de cuja boca saem os disparates certeiros na crítica da loucura da sociedade pela veia de Sebastian Brant e mais tarde de Erasmo. Algumas representações do toque da gaita-de-foles aproximam-se de figuras metamorfoseadas (especialmente monges) cujos narizes se prolongam nos tubos da gaita ou nas flautas imprimindo-lhes um nítido carácter fálico. Noutros casos a associação sexual é mais explícita, mostrando claramente cenas de sexo contra natura ao lado dos porcos, macacos e coelhos gaiteiros.

A luta dos sexos
As referências a castigos domésticos, e guerras de sexos, parodiados nas festas carnavalescas também são comuns na marginalia dos cadeirais e em gravuras da época. Uma das variantes consistia na chamada briga pelas calças, em que a mulher as disputa ao marido, assim como noutras afirmações do sexo fraco capaz punir a vanglória masculina. Nas misericórdias dos cadeirais era muito comum o exemplo da dona-de-casa que castiga o esposo por chegar tarde e a más horas para a ceia. A iconografia completa faz figurar a mulher a castigar o marido com um pau enquanto o animal doméstico aproveita a briga e come o repasto do pote». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT