quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O Manuscrito Alfield. Manuscrito de 1516. Alan Dorsey Stevenson. «Mas os cavaleiros do reino juntaram-se contra ele, dizendo que não deixariam queimar mulher nenhuma por causa de uma taça feita por feitiçaria pela mais falsa de todas as feiticeiras e bruxas…»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) Só então pôs os olhos na mulher, que se calara de cantar, e saudou-a com reverência, e às outras três também. Elas responderam à saudação e perguntaram, Qual é teu nome, e ele disse. Aí começaram a conversar elas e ele, e a mulher que cantara é que mais lhe fazia perguntas e lhe dava respostas, e Roger, quando soube que vinham em romaria à ermida de Byes, logo imaginou-as sensatas, devotas, prudentes e cheias de bondade, e aquela mulher em especial mais que as outras, e num piscar de olhos caiu enamorado dela. A mulher que cantara era Marguerite Reynespagne, e dali em diante ambos os dois começaram a passar muito tempo juntos, conversando juntos sobre muitas coisas, quer coisas do céu, quer da terra. A ela bem que agradou a companhia de Roger, que andava na flor da juventude e era tão formoso que ela não supunha que houvesse outro igual. Letrada era só um pouco, mas entendia algum latim e, quando ele a ouviu dizer, Inter vana, nihil vanius est homine, isto é, entre as coisas fúteis, nada há mais fútil que o homem, e outras tais palavras como essas, maravilhou-se muito e amou-a ainda mais. Uma vez perguntou-lhe sobre o seu marido Bursegaunt; ela respondeu com doçura que o marido era um ancião e que a idade o levara de volta à infância e, doente e decrépito, lançava o fluxo de suas purgações no leito e por todo o canto, como criança de berço.
Roger abriu bem as orelhas para sorver-lhe as palavras e gostou de ouvir aquele relato, pois sua imaginação lhe disse que essa boa mulher não saía de perto do marido, servindo-o humilde como uma camareira: e em sua imaginação ele a viu tal como uma santa na terra. Bem podia ela parecer uma santa, mas de santa não tinha nada por dentro, pois, ao contrário do que aparentava, era matreira e maliciosa como a senhora de Anvil e todas as outras. Uma noite, quando essas mulheres estavam no salão com sir Roger e frei Hugh, e Amidieu com eles, mas não Katherine, que fora a Mons visitar a madrinha, o frade disse que nunca vira tantas belas mulheres reunidas juntas a bem da virtude e da caridade. Por São João, disse a senhora de Danvil, também temos outros propósitos em nossa viagem. Ao que lady Marguerite disse que as palavras do frade trouxeram-lhe a relelembrança de uma história da bela Isolda, e tanto a incitaram todos a contá-la que ela começou assim: Como bem sabeis, nos antigos dias do rei Artur a fada Morgana tinha ódio mortal a sir Lancelote. E, quando soube que sir Lancelote e a rainha Guinevere tinham um amor verdadeiro um pelo outro, mandou ao rei Artur uma bela taça toda guarnecida de ouro, e o poder da taça era que nenhuma mulher seria capaz de beber daquela taça a não ser que fosse fiel ao marido: se lhe fosse infiel, cuspiria toda a bebida no chão. Ora, aconteceu que o mensageiro da fada Morgana topou no caminho com sir Lamorac, que o forçou a dizer a causa por que levava consigo aquela taça. E, quando sir Lamorac soube do poder que tinha a taça, pensou em usá-la para pôr à prova a bela Isolda, mulher do rei Marcos, pois suspeitava dela com sir Tristão. E disse ao mensageiro, Se não queres morrer, leva essa taça não ao rei Artur mas ao rei Marcos. E diz ao rei Marcos que lhe mando a taça para ele pôr à prova a sua mulher e saber se lhe é fiel ou não. O mensageiro pôs-se a caminho do palácio do rei Marcos e lá chegado contou-lhe a sua aventura com sir Lamorac e qual era o poder daquela taça. Então o rei mandou a rainha Isolda beber da taça, e uma centena de outras mulheres também: e só houve quatro dentre elas que beberam direito: todas as outras, e a rainha junto com elas, cuspiram a bebida em sinal de que não eram fiéis aos maridos. Que grande afronta, bradou o rei, e jurou solenemente que faria queimar a rainha e as outras mulheres na fogueira. Mas os cavaleiros do reino juntaram-se contra ele, dizendo que não deixariam queimar mulher nenhuma por causa de uma taça feita por feitiçaria pela mais falsa de todas as feiticeiras e bruxas que havia no mundo, pois daquela taça nunca viera nada de bom, mas só rixa e discórdia, e Morgana sempre durante a sua vida fora inimiga de todos os verdadeiros amantes.
E foi assim que a bela Isolda e as outras mulheres da corte do rei Marcos escaparam à fogueira. Por minha alma, disse a senhora de Danvil, se a nós mulheres de Danvil nos mandassem beber dessa taça, dentre cem de nós, nem quatro, nem duas, nem uma só sido capaz de beber sem lançar toda a bebida ao chão! Amidieu ficou muito confuso com toda essa conversa e não sabia o que pensar nem dizer. E ainda mais confuso ficou quando, pouco depois, ouviu Lady Marguerite contar a história de Bursegaunt seu marido e das três mulheres de que fora amante de todas elas ao mesmo tempo. Essas três mulheres eram todas primas e um dia sentaram-se juntas e puseram-se a conversar, até que uma hora uma delas disse: maldita aquela que não responder agora, em nome da boa amizade que há entre nós três, à pergunta que lhe será feita, isto é, se teve algum amante ou não este ano. Concordaram todas em responder, e a primeira delas disse: na verdade, eu tive; e a segunda e a terceira disseram o mesmo. Agora, disse a mais petulante, que dentre as três fora autorizada pelas outras a ser naquele dia rainha delas (era costume entre as mulheres da época escolher uma delas como rainha das outras, cabendo-lhe governá-las nos jogos e brincadeiras daquele dia), mal amada aquela que não disser o nome do último amante que teve». In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT