domingo, 11 de outubro de 2015

Novas Cartas Portuguesas. Maria Barreno, Maria Horta, Maria Costa, (As Três Marias). «… a figura de “Mariana Alcoforado” passar de uma sombra textual anónima para uma identidade pessoal e uma genealogia, familiar e nacional, que a configurou…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Está decretada a gravidade desta empresa. O que farei convosco será grave, ainda que para tanto haja que rir-me. Ou, como hoje, nem tanto». In Ana Luísa Amaral, Novas Cartas Portuguesas

«Foi em Lisboa, em Maio de 1971, que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa decidiram escrever um livro a seis mãos, as mesmas mãos a que depois se refeririam como as de três aranhas astuciosas. Cada uma das autoras havia publicado algum tempo antes livros marcados por uma forte dimensão política, que tinham desafiado, de formas diversas, os papéis sociais e sexuais esperados das mulheres: se, em Maina Mendes (1969), de Maria Velho Costa, a protagonista, Maina, perde a fala, reinventando uma outra, nova, em Os Outros Legítimos Superiores (1970), de Maria Isabel Barreno, é denunciado o silêncio simbólico das mulheres, até pela atribuição do nome genérico Maria a todas as personagens femininas, e em Minha Senhora de Mim (1971), de Maria Teresa Horta, a voz poética, claramente identificada como feminina, reivindica para si o direito de falar do corpo, do desejo e da sexualidade da mulher. Nesse encontro de Maio de 1971, ficou acordado que, para a escrita em conjunto, as autoras partiriam do romance epistolar Lettres Portugaises, publicado anonimamente por Claude Barbin, em 1669, e apresentado como uma tradução, anónima também, de cinco cartas de amor endereçadas a um oficial francês por Mariana Alcoforado, jovem freira enclausurada no convento de Beja. A autoria das cartas era (e é ainda) polémica, com a crítica dividindo-se entre a própria Mariana e Gabriel-Joseph Guilleragues, mas o impacto que elas tiveram no século XVII continuou a fazer-se sentir ao longo dos séculos que se seguiram a essa primeira publicação. Sujeitas a constantes traduções e reedições em várias línguas, as cartas de Mariana seriam, trezentos anos depois, em 1969, publicadas em edição bilingue, com o título Cartas Portuguesas. Foi essa a edição utilizada por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa. Mais relevante do que saber a verdadeira autoria de Cartas Portuguesas, foi o facto de a figura de Mariana Alcoforado passar de uma sombra textual anónima para uma identidade pessoal e uma genealogia, familiar e nacional, que a configurou (...) como epítome nacionalmente representativo da feminilidade e, aos olhos dos Portugueses, da identidade nacional em geral. Essa questão do mistério relativamente à autoria viria a ser de extrema importância para a recepção do livro Novas Cartas Portuguesas, afinal, as autoras nunca revelaram publicamente quem assinava parcelarmente os textos, desestabilizando as noções fixas de autoria e de autoridade. Não menos relevante para a concepção de Novas Cartas terá sido a escolha de Cartas Portuguesas como texto matricial justamente pelo peso simbólico de que se revestia a figura de Mariana e pela imagem feminina que delas emergia: o estereótipo da mulher abandonada, suplicante e submissa, alternando entre a adoração e o ódio, e praticando um discurso de paixão avassaladora por aquele (o cavaleiro) que se apaixonara também, mas partira depois, para não mais regressar. É esta relação de amor e devoção, de subserviência e autovitimização que as três autoras, três séculos depois, aproveitando-lhe os contornos mais gerais, vão desmontar e re-montar, estilhaçando fronteiras e limites, quer das temáticas, quer da própria linguagem. À data desse encontro entre Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho Costa, em 1971, Portugal era dominado por uma ditadura fascista. Afastado do governo devido a um hematoma craniano que o deixaria incapacitado, António Oliveira Salazar fora substituído, em 1968, por Marcelo Caetano. Salazar morreria em 1970 e o governo de Marcelo Caetano, que anunciara uma abertura política, continuava de facto a praticar uma idêntica governação ditatorial e repressiva, alheia aos processos de descolonização e das lutas pelos direitos cívicos que haviam eclodido durante toda a década de sessenta na Europa e nos Estados Unidos da América. O governo português mantinha teimosamente as chamadas províncias ultramarinas. Em 1961, eclodira uma guerra que havia, na altura do 25 de Abril de 1974, mobilizado quase 150 000 homens, na grande maioria jovens. No decurso da escrita de Novas Cartas Portuguesas, durante esse ano de 1971, os sentimentos de injustiça e revolta quanto à causa da guerra colonial aumentavam entre os militares e as suas famílias. Muitos desertavam. Angola é nossa, o mote que dominara manifestações montadas a favor do regime, não surtia já qualquer efeito num país que, nos últimos dez anos, havia visto quase dois milhões dos seus habitantes atravessar as fronteiras, muitos deles clandestinamente e arriscando a própria vida, e ir construir bairros de lata em países mais prósperos. Que força é essa amigo / que te põe de bem com outros / e de mal contigo, cantava Sérgio Godinho, no seu primeiro álbum Sobreviventes». In Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho Costa, Novas Cartas Portuguesas, 1972, edição anotada, Publicações dom Quixote, 1998, 2010, ISBN 978-972-204-011-2.

Cortesia PdQuixote/JDACT