domingo, 25 de outubro de 2015

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Um imenso minuto em que ela descansaria calma, frágil até, quase perdida, prestes a deixar-se escorregar mais, os lábios a aflorarem o tecido da água, os membros inertes, moles…»

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A Tarde
«(…) Deitava-se vestida, fechava os olhos, deixava as mãos imóveis sobre a coberta da cama; apenas rebolava a cabeça de vez em quando na almofada. Os cabelos espalhados ou amarfanhados; pegados de suor, formavam estranhos desenhos nos desenhos da colcha e as mãos imóveis, brancas, pareciam deter, anémicas, absurdas, qualquer movimento da tarde onde ela se deitava, qualquer movimento do corpo sobre a cama: pequenas âncoras. E o tecto. Abria os olhos e o tecto lá estava, de uma aridez plana, lisa, como sempre, excepto a noite a dissimular-se no escuro, lá estava sobre a sua cabeça e as paredes. A partir do tecto as paredes por onde o olhar deslizava, escorregava mesmo. E as mãos pesadas, ancorando o corpo à solidão amordaçada do quarto abafado, fechado, onde o sol rastejava por entre as lâminas acesas da persiana, na enorme janela envidraçada até ao chão, onde o sol reflectia o calor da varanda, do sol na varanda, nos cortinados rendados, do sol amortecido no tapete, ou do Verão amortecido nos cabelos com o suor a colá-los à cara, ao pescoço. E toda vestida demorava-se tardes inteiras deitada.

A Piscina
Deixava-se escorregar e a água tépida entreabria-se à medida que o corpo deslizava aderindo a ela, os braços e as pernas flexíveis, o corpo lento, os olhos sem expressão presos na água verde, reflexo do verde-ácido da piscina. Depois afastava-se ou ficava indiferente ali mesmo junto da borda, deixando os ombros aflorarem o mármore molhado, escorregadio: se alguém aí estivesse ou a visse das enormes janelas, através das cortinas rendadas, se se debruçasse na varanda derramada de sol onde uma cadeira de repouso e uma mesa, amodorradas, se esqueciam, pensaria que tivesse adormecido e talvez se assustasse. Soltando um grito agudo, taparia os olhos? Ou talvez apenas soltasse um gemido e se inclinasse ávido. E ela olhá-lo-ia assim, os olhos semicerrados, líquidos de encontro ao sol que na varanda delineava o vulto inclinado, de palmas geladas, suadas de expectativa, sobre a boca que ela sabia mole, salivosa; o olhar subiria levemente até ao tecto arruivado, até ao céu espesso retesado de claridade, a estoirar de luz, onde a cor dos olhos, de tão líquidos, se desvaneceria, igual, transparente. E o silêncio estagnado entreabria-se ao som imperceptível da água a escorrer pelo seu corpo: lisa, macia, o verão todo ali concentrado, tenso, vibrante. Um imenso minuto em que ela descansaria calma, frágil até, quase perdida, prestes a deixar-se escorregar mais, os lábios a aflorarem o tecido da água, os membros inertes, moles.

O Ócio
Deixava o livro e ficava se horas a ver o pássaro debater se na gaiola. Nua, o sol batia-lhe de chapa sobre o corpo estendido na cadeira de repouso vermelha e azul, azul só nas pequenas flores, flores minúsculas aqui e além no tecido brilhante, macio. O livro aberto no chão marmóreo da varanda, a capa dobrada a formar um vinco no verniz lustroso, a gaiola dourada com um suporte esguio, alto, nascendo de uma base tripartida: três pés curvos muito separados, junto à mesa onde se esquecia um copo. E ela nua na cadeira comprida, o sol de chapa no corpo liso, suado. A varanda. Era como se o meio-dia ali estivesse estagnado, sem uma sombra e ela a fixar o pássaro debatendo-se na gaiola talvez por causa do calor, as asas amarelas com um ruído seco nas grades finas. Um pássaro esvoaçando entontecido às duas da tarde na varanda: ou então será apenas meio-dia, onde a mulher larga o livro que não leu e move tão lentamente um braço que, quando a mão sobre a pele dos seios começa a limpar, em movimentos circulares, o suor, pode-se perguntarse a mão não estivera sempre ali em vez de a segurar o livro que agora, no chão, é uma mancha mais escura na claridade espessa, acre, que corta, fazendo recuar quem deseje ir dizer seja o que for àquela mulher, quem queira aproximar-se para lhe pôr a mão no ombro escaldante, trazendo-lhe a fresca sombra de um vulto inclinado. E os dedos descem até às coxas, detêm-se no púbis, onde mergulham sempre lentos, numa espécie de rastejar, arrastando-se como que vistoriando cansados, ou apenas atentos a qualquer partícula de suar. Atenta toda ela ao pássaro que se debate obstinadamente no globo dourado que o sol faz luzir, incendiar sem reflexos; e os dedos perto dos olhos crispam-se ao ruído seco das asas amarelas e caminham agora no vácuo seco em direcção ao copo vazio, ressequido, que logo deixam, perplexos; e os olhos desviam-se nesse mesmo vácuo até encontrarem o copo, para logo tomaram toda a intensidade: o tamanho da sede daquela mulher concentrada nesse sentimento de sede, nessa indecisão de tocar ou não a campainha até aí escondida e sempre inútil atrás do copo que os dedos desviaram inadvertidamente do seu sítio: o lado esquerdo da mesa quadrada de verga branca. E a mulher detém indecisa os olhos na enorme porta envidraçada, resplandecente, nos cortinados rendados para além dos quais as pessoas se devem mover rápidas, precisas, na frescura baça das salas, do corredor, conscientes sempre da sua presença ali: nua e isolada, defendida pela claridade total do meio-dia onde se estende entorpecida, só com o ruído seco das asas amarelas do pássaro de encontro ao globo metálico que o prende ao sol. às duas da tarde raivosas na pele lisa, suada, ou apenas o meio-dia ainda esquecido ou clandestino, ali estagnado na varanda ao comprido do seu corpo». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT