domingo, 18 de outubro de 2015

O Torturado de Seide. Camilo Castelo Branco. Alberto Pimentel. «… resultou a urgência do governo de 1852 expropriar o antigo hospício dos náufragos, que o governo de 1835 tinha vendido por 800$00 réis. Custou a expropriação 5 contos. A história da administração pública em Portugal confunde-se com a dos manicómios…»

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Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor sobre assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e saudade que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In Alberto Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.

«(…) Se consultar o Grande Dicionário de Larousse, encontrará que dropp, palavra inglesa, significa uma espécie de guindaste empregado em Inglaterra para meter a carga a bordo dos navios. A roldana deste guindaste está montada sobre uma plataforma de via-ferrea e suspende por um cabo a larga balança em que desce até á ponte do navio o vagonete carregado. Mas, como se entrevê da sátira de Camilo, o dropp não exercia na praia da Foz uma funcção comercial como em Inglaterra. Apenas por analogia se lhe dera aquele nome, e o seu fim era diferente. Historiemos, ligeiramente, os acontecimentos. Em 1830 o infante Miguel mandou construir junto à barra um hospício onde os náufragos pudessem receber prontos socorros. Esse edifício custou 6.400$000 réis. Poucos anos depois, em 1835, o governo vendeu-o a um particular por 800$00 réis. Custa a crer, mas é verdade.
Sucedeu, a 29 de março de 1852, o horroroso naufrágio do vapor Porto, que tanto emocionou todo o pais especialmente os portuenses, muitos dos quais presencearam a catástrofe em todos os seus angustiosíssimos episódios. Logo no dia seguinte a Associação Comercial se reuniu para ouvir lêr uma representação, redigida por Eduardo Móser, na qual aquela corporação chamava a atenção do governo para o estado perigoso da barra e falta de recursos de salvação em caso de naufrágio. Logo também, graças à iniciativa particular, em grande parte estimulada por Manuel Clamouse Browne, se tratou da fundação da Real Sociedade Humanitária, que teve a sua primeira sessão no paço episcopal e que se constituiu legalmente por um regulamento de 21 de abril do mesmo ano. O lugar de secretário foi confiado a Eduardo Móser (mais tarde 1.° conde de Móser). Os esforços reunidos da Associação Comercial, da Real Sociedade Humanitária e da opinião pública do Porto, obrigaram o governo de então a adoptar algumas providencias não só para investigar as causas da catástrofe e subsidiar as famílias pobres que nela tinham perdido os seus chefes, mas também para evitar ou pelo menos atenuar futuras catástrofes.
Entre estas ultimas providencias a de mais imediata vantagem foi certamente aquela que organizou a comissão directora do estabelecimento de salva-vidas, composta do governador civil, do intendente de marinha, de dois vogais da Real Sociedade Humanitária e dois da Associação Comercial. De todos estes factores resultou a urgência do governo de 1852 expropriar o antigo hospício dos náufragos, que o governo de 1835 tinha vendido por 800$00 réis. Custou a expropriação 5 contos. A história da administração pública em Portugal confunde-se com a dos manicómios. O feliz proprietário, que adquirira o edifício erigido pelo infante Miguel, gozou esse edifício durante 17 anos pela quantia de 800$000 réis, e, por fim, em virtude da expropriação, ainda lucrou 4:200$00 réis!
Foi a Real Sociedade Humanitária que, na sua primeira época, e no empenho de rapidamente obstar a que se repetisse uma tragedia maritima como a do vapor Porto, ingente e pavorosa tanto pelo numero das vitimas, como pelas condições de absoluto desamparo em que se encontraram, fez levantar junto à barra um alto palanque destinado ao salvamento de náufragos. Suponho que a ideia partiria de Eduardo Móser ou de Claraouse Browne, que não perderam nunca o seu caracter inglês durante uma longa residência no Porto. Tive com Eduardo Móser aproximações de boa amizade. Conheci-o no Jornal do Porto, onde me estreei, e onde ele tratava muitas vezes assuntos económicos, apoiando-se sempre nas pautas e estatísticas britânicas. Era um espirito ilustrado, trabalhador e progressivo. Na figura, lembrava Thiers. Pequenino como ele. A face também glabra. Normalmente vestido de preto, como todo o comerciante inglês daquela época. Uma fineza lhe devi que não posso esquecer». Por estas e outras quintilhas fica-se apenas percebendo vagamente que o dropp era um aparelho de pau, destinado a servir junto da barra do Porto para socorro dos navegantes». In Alberto Pimentel, O Torturado de Seide, Camilo Castelo Branco, Livraria Manuel dos Santos, Lisboa, 1921.
                      
Cortesia de LMSantos/JDACT