quarta-feira, 10 de agosto de 2016

A Biblioteca Desaparecida. Luciano Canfora. «Esta é a descrição de Hecateu na transcrição feita, dois séculos mais tarde, pelo siciliano Diodoro. Portanto, Hecateu, no decorrer da visita, parece ter chegado até à biblioteca»

Cortesia de wikipedia e jdact

A biblioteca sagrada
«(…) Hecateu contou terem lhe explicado o complicado percurso que levava até o sarcófago de Ramsés. Conseguira eludir a proibição do faraó, ou vencera a prova implícita naquela frase aparentemente esconjuratória? Ou será que agora a frase já perdera sua eficácia, e era exposta apenas como curiosidade aos visitantes do mausoléu? Eis seu relato: as três passagens conduziam a uma sala com colunas, construída em forma de odeon, tendo sessenta metros de comprimento. Essa sala estava repleta de estátuas de madeira, representando alguns litigantes com o olhar voltado para os juízes. Os juízes estavam esculpidos ao longo de uma das paredes, em número de trinta, e sem mãos; no meio, estava o juiz supremo com a verdade pendendo do pescoço e os olhos fechados, e no chão, a seu lado, um monte de rolos. Explicaram que essas figuras pretendiam significar com sua postura que os juízes não devem receber doações, e que o juiz supremo só deve ter olhos para a verdade. Prosseguindo, entrava-se num perípato circundado por todos os tipos de vãos, ornamentados com relevos representando a maior variedade de finos alimentos. Ao longo do perípato distribuíam-se baixos-relevos coloridos, num dos quais aparecia o rei oferecendo à divindade, ouro e prata extraídos das minas durante o ano em todo o Egipto. Sob esse relevo estava indicado o rendimento total, expresso em minas de prata: 32 milhões. Em seguida havia a biblioteca sagrada, por cima da qual estava escrito lugar de cura da alma. Seguiam-se as imagens de todas as divindades egípcias, a cada uma das quais o rei oferecia dádivas apropriadas, como se quisesse demonstrar a Osíris e aos deuses inferiores que vivera toda a vida de modo piedoso e justo em relação aos homens e aos deuses. Havia também uma sala, construída sumpuosamente, com uma parede que coincidia com a biblioteca. Nessa sala havia um conjunto de mesas com vinte triclínios e as estátuas de Zeus e Hera, e ainda a do rei. Parece que ali estivera sepultado o corpo do rei. Disseram que essa sala possuía, por toda a volta, uma notável série de vãos, onde estavam admiravelmente pintados todos os animais sagrados do Egipto. Quem subisse por esses vãos ver-se-ia diante da entrada do túmulo. Ela se encontrava no tecto do edifício. Nele, podia-se observar um círculo de ouro com 365 cúbitos de comprimento e um cúbito de altura. Nesse círculo, estavam descritos e dispostos os dias do ano, um para cada cúbito: para cada dia, estavam indicados o nascer e o pôr dos astros e os sinais que, segundo os astrólogos egípcios, derivam de tais movimentos. Disseram que esse friso fora degradado por Cambises na época em que se apoderou do Egipto. Esta é a descrição de Hecateu na transcrição feita, dois séculos mais tarde, pelo siciliano Diodoro. Portanto, Hecateu, no decorrer da visita, parece ter chegado até à biblioteca. A partir daí, seus acompanhantes apenas descreveram ou fizeram imaginar o restante. De facto, após a biblioteca, suas indicações tornam-se menos precisas. Por exemplo, não se esclarece como é a passagem da biblioteca para a grande sala dos triclínios; diz-se apenas que há uma parede em comum. Mas é a própria natureza da biblioteca que não fica imediatamente evidente: digno de atenção é o detalhe, narrado com grande precisão, de que um relevo, o dos deuses egípcios e do faraó que oferece dádivas, segue-se à biblioteca. Tudo isso foi narrado por Hecateu num livro quase romanesco, intitulado Histórias do Egipto, que escreveu ao final de sua viagem. Visto que não chegou até nós, temos de nos contentar com aquilo que foi transcrito por Diodoro. Hecateu, em seu livro, mesclou o antigo e o moderno, colocou no mesmo plano a antiga realidade egípcia e a nova realidade ptolomaica, as antigas e as novas normas, vigentes em sua época sob o primeiro Ptolomeu. Numa longa digressão, falou também dos hebreus no Egipto e de Moisés, assim tocando num assunto da actualidade na vida do novo reino greco-egípcio. E, para que tudo ficasse ainda mais claro, incluiu em seu relato uma secção inteiramente dedicada a mostrar como os melhores legisladores gregos vieram ao Egipto para trazer inspiração e doutrina. Que melhor garantia, pois, da efectiva continuidade entre o antigo e o novo Egipto? Seu trabalho foi muito apreciado pelo soberano, que lhe confiou uma missão diplomática. Por conta de Ptolomeu, Hecateu foi a Esparta». In Luciano Canfora, A Biblioteca Desaparecida, 1986, Companhia das Letras, 1989, ISBN 978-857-164-051-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT