quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Veneno no 31. Estudos sobre Veneno. Maria V. Snyder. «Dei um demorado gole. O líquido gostoso ardeu ligeiramente ao passar pela minha garganta. Por um instante, pensei que meu estômago se fosse revoltar. Era a primeira vez que eu estava bebendo algo além de água»

jdact e wikipedia

As lendas de Yelena Zaltana
«(…) Eu. Sendo assim, estou ansioso para encontrar um substituto. Além disso, o Código de Conduta estabelece que o emprego deve ser oferecido a alguém cuja vida esteja em jogo. Sem conseguir permanecer sentada, fiquei de pé e comecei a andar de um lado para o outro, arrastando as correntes comigo. Os mapas nas paredes mostravam posições militares estratégicas. Os títulos dos livros tinham a ver com técnicas de segurança e espionagem. O estado e a quantidade das velas sugeriam alguém que trabalhava até tarde da noite. Olhei de volta para o homem no uniforme de conselheiro. Ele devia ser Valek, o chefe de segurança pessoal do Comandante e líder da vasta rede de inteligência do Território de Ixia. O que digo para o carrasco? Valek perguntou. Que não sou tola.
Valek fechou a pasta. Ele caminhou até à porta, com seu andar leve e gracioso como o de um gato das neves trilhando sobre gelo fino. Os guardas que esperavam no corredor ficaram em posição de sentido quando a porta se abriu. Valek falou com eles, e os homens assentiram. Um dos guardas veio em minha direcção. Eu o fitei. Voltar para o calabouço não fizera parte da oferta de Valek. Será que eu conseguiria escapar? Passei os olhos pelo aposento. O guarda me virou e retirou os grilhões e as correntes que eu vinha usando desde que fora presa. Faixas de carne viva rodeavam meus pulsos ensanguentados. Levei a mão ao pescoço, sentindo a pele onde costumava haver metal. Meus dedos ficaram empapados de sangue. Tateei em busca da cadeira. Estar livre do peso das correntes fez com que uma estranha sensação se apossasse de mim. Sentia-me como se fosse voar para longe, ou então desmaiar. Inspirei fundo até a fraqueza passar. Quando recobrei a compostura, notei que Valek estava postado ao lado da escrivaninha, servindo bebida em dois copos. Um armário de madeira aberto revelava em seu interior fileiras de garrafas de estranhos formatos e jarras multicoloridas. Valek guardou dentro do armário a garrafa que estava segurando e trancou a porta. Enquanto estamos esperando por Margg, pensei que você talvez gostasse de uma bebida. Ele me passou um cálice alto de estanho cheio de um líquido cor de âmbar. Erguendo o próprio cálice, fez um brinde. À saúde de Yelena, nossa nova provadora de comida. Que você dure mais do que seu predecessor. Deteve meu cálice a poucos centímetros de meus lábios. Relaxe, ele disse. É um brinde tradicional.
Dei um demorado gole. O líquido gostoso ardeu ligeiramente ao passar pela minha garganta. Por um instante, pensei que meu estômago se fosse revoltar. Era a primeira vez que eu estava bebendo algo além de água. Depois, ele se acalmou. Antes que eu pudesse indagar o que exactamente acontecera com o provador de comida anterior, Valek me pediu para identificar os ingredientes da bebida. Dando um gole pequeno, eu respondi: pêssegos adoçados com mel. Óptimo. Agora, dê outro gole. Dessa vez, deixe o líquido rolar ao redor da língua antes de engolir. Eu obedeci, e surpreendi-me com um ligeiro sabor cítrico. Laranja? Isso mesmo. Agora, gargareje. Gargarejar?, perguntei. Ele assentiu. Sentindo-me tola, gargarejei com o restante da minha bebida e quase a cuspi fora. Laranjas podres! Rugas se formaram ao redor dos olhos de Valek quando ele riu. Tinha um rosto forte e angular, como se alguém o houvesse recortado de uma chapa de aço, mas que se suavizava quando o homem ria. Passando-me sua bebida, ele pediu que eu repetisse o procedimento. Com um pouco de receio, dei um gole, mais uma vez detectando o ligeiro sabor de laranja. Preparando-me para o gosto rançoso, gargarejei com a bebida de Valek e fiquei aliviada ao me dar conta de que o gargarejo apenas realçava a essência de laranja. Melhor?, Valek perguntou, tomando de volta a taça vazia. Melhor. Valek sentou-se atrás da mesa, mais uma vez abrindo a pasta. Pegando seu cálamo, ele conversou comigo enquanto escrevia. Você acaba de ter sua primeira lição no ofício de provar comidas. Sua bebida continha um veneno chamado Pó de Borboleta. O único modo de detectar Pó de Borboleta em um líquido é fazendo o gargarejo. Aquele gosto de laranja podre que sentiu era o veneno. Fiquei de pé, minha cabeça girando. É letal? Uma dose grande o suficiente mata uma pessoa em dois dias. Os sintomas só aparecem no segundo dia, porém, então, já é tarde demais. Eu tomei uma dose letal? Prendi a respiração. É claro. Qualquer coisa menos e você não teria sentido o gosto do veneno». In Maria V. Snyder, Estudos sobre Veneno, 2005, As lendas de Yelena Zaltana, tradução de Maurício Araripe, ePub, Editora HR, Harlequin Enterprises, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-853-980-460-3.

Cortesia de EditoraHR/HarlequinE/JDACT