sábado, 27 de agosto de 2016

A Mancha Humana. Philip Roth. «… fez a confidência acerca de Faunia Farley e do segredo de ambos foi, por curiosa coincidência, aquele em que o segredo de Clinton se tornou conhecido nos mais ínfimos…»

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«Foi no Verão de 1998 que o meu vizinho Coleman Silk, que, antes de se reformar dois anos antes, fora professor de estudos clássicos no Athena College durante vinte e tal anos, além de ter servido dezasseis como reitor da faculdade confidenciou que, aos 71, tinha um caso com uma empregada de limpeza de 34, que trabalhava na universidade. Duas vezes por semana também fazia a limpeza do posto dos correios rural, uma pequena construção de madeira que poderia ter abrigado uma família Okie dos ventos da Dust Bowl (Okie era o nome dado na época, em geral depreciativamente, aos trabalhadores agrícolas migrantes, sobretudo de Oklahoma; Dust Bowl é uma região que os ventos, as tempestades de areia e a seca tornam árida) nos anos 30 e que, solitária e desamparada defronte da estação de serviço e do armazém-geral, hasteia abandeira americana no cruzamento das duas estradas que assinala o centro comercial desta cidade da encosta da montanha. Coleman vira-a pela primeira vez a lavar o chão do posto dos correios quando lá fora ao fim de um dia, poucos minutos antes da hora de encerramento, buscar a sua correspondência. Era uma mulher alta, magra e angulosa, com o cabelo louro a encanecer puxado para trás e preso num rabo-de-cavalo e o género de feições duramente vincadas que costumamos relacionar com as donas de casa dominadas pela igreja e sobrecarregadas de trabalho que sofreram as agruras dos duros primeiros tempos da Nova Inglaterra, colonas austeras, tolhidas pela moral vigente e obedecendo-lhe. Chamava-se Faunia Farley e, fossem quais fossem os sofrimentos que suportava, escondia-os atrás de um daqueles inexpressivos rostos ossudos que não escondem nada e denunciam uma imensa solidão. Vivia num quarto numa herdade leiteira local, onde ajudava na ordenha para pagar a renda. Frequentara a escola secundária durante dois anos.
O Verão em que Coleman me fez a confidência acerca de Faunia Farley e do segredo de ambos foi, por curiosa coincidência, aquele em que o segredo de Clinton se tornou conhecido nos mais ínfimos e mortificantes pormenores, nos mais ínfimos pormenores reais em que tanto a realidade como a mortificação supuravam da pungência dos dados específicos. Não tínhamos uma estação assim desde que alguém descobrira, por acaso, a nova Miss América nua num número antigo da Penthouse, em fotografias que a mostravam em elegantes poses de joelhos e de costas e tinham forçado a jovem a abdicar da coroa e a tornar-se uma grande estrela pop. O Verão de 98 foi, em Nova Inglaterra, um verão de calor e sol intensos; no basebol, um verão de combate mítico entre um deus do home-run que era branco e outro que era acastanhado, e na América o verão foi caracterizado por um enorme regabofe de devoção, um regabofe de virtude, quando ao terrorismo, que destronara o comunismo como ameaça predominante à segurança do país, sucedeu o brochismo e um presidente viril, vigoroso e de meia-idade e uma impetuosa e enfeitiçada funcionária de 21 anos, desaforados no Salão Oval como dois putos adolescentes num parque de estacionamento, ressuscitaram a mais antiga paixão comunal da América, historicamente talvez, até, o seu prazer mais pérfido e subversivo: o êxtase da beatice hipócrita. No Congresso, na imprensa e nas televisões os farisaicos paladinos encartados da moral e dos bons costumes, sôfregos por censurar, deplorar e punir, apareciam em todo o lado numa estridente campanha moralizadora: todos eles num furor deliberado e com aquilo que Hawthorne (que, na década de 1860, morava a relativamente poucos quilómetros da minha porta) identificou, no país incipiente de há muito tempo, como o espírito persecutório; todos eles ansiosos por porém em prática os cáusticos rituais de purificação que excisariam a erecção do ramo executivo, tornando assim as coisas suficientemente cómodas e seguras para que a filha de 10 anos do senador Lieberman pudesse voltar a ver televisão com o seu embaraçado papá. Não, quem não viveu no ano de 1998 não sabe o que é a indignação hipócrita. O colunista conservador William Buckley escreveu: quando Abelardo o fez, foi possível impedir que voltasse a acontecer, insinuando assim que a prevaricação do presidente, aquilo a que, noutro lugar, Buckley chamou a carnalidade incontinente de Clinton, poderia ser mais justamente punida com algo que não fosse tão incruento como a impugnação, mas, antes, com o castigo do século XII aplicado ao cónego Abelardo pelos companheiros de faca em punho do colega eclesiástico daquele, o cónego Fulberto, por ter seduzido e casado secretamente com a sobrinha deste, a virgem Heloísa». In Philip Roth, A Mancha Humana, 2000, Publicações dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-206-034-9.

Cortesia de PdQuixote/JDACT