terça-feira, 16 de agosto de 2016

Julieta. Anne Fortier. «É claro que fez, fora a resposta diplomática de Umberto. Era meia-noite quando deslizamos pela entrada de automóveis da casa de tia Rose. Umberto já me avisara que Janice tinha chegado da Flórida naquela tarde»

jdact e wikipedia

«(…) O Lincoln havia sido discretamente estacionado perto da fogueira e ninguém viu Umberto por minha velha mochila no porta-malas, antes de abrir a porta traseira com deliberada cerimónia. Quero me sentar na frente. Por favor! Ele balançou a cabeça com ar reprovador e abriu a porta do carro: Eu sabia que tudo ia desmoronar. Mas nunca tinha sido tia Rose quem insistira na formalidade. Embora Umberto trabalhasse para ela, sempre havia sido tratado como uma pessoa da família. Mas nunca retribuíra da mesma forma. Toda vez que tia Rose o convidava a se sentar connosco à mesa de jantar, Umberto simplesmente a fitava com intrigada tolerância, como se, para ele, fosse um eterno mistério o facto de ela continuar, a convidá-lo e, de algum modo, simplesmente não entender. Umberto fazia todas refeições na cozinha: sempre fora e sempre seria assim, e nem mesmo o nome de Cristo, proferido com exasperação crescente, era capaz de convencê-lo a se sentar connosco, nem sequer no Dia de Acção de Graças. Tia Rose desdenhava essa peculiaridade de Umberto como coisa de europeu, o que emendava sem esforço com um discurso sobre tirania, liberdade e independência, que inevitavelmente culminava em ela nos apontar o garfo e rosnar e é por isso que não passaremos as férias na Europa. Especialmente na Itália. Fim de conversa. Pessoalmente, eu tinha quase certeza de que Umberto preferia fazer as refeições sozinho apenas por considerar sua própria companhia muito superior ao que tínhamos a oferecer. Ficava lá na cozinha, tranquilo com sua ópera, seu vinho e seu pedaço de queijo parmesão perfeitamente curado, enquanto nós, tia Rose, Janice e eu, trocávamos farpas e tiritávamos de frio na sala de jantar. Se eu pudesse, também teria passado todos os minutos de todos os dias na cozinha.
Ao cruzarmos o escuro vale do Shenandoah nessa noite, Umberto me falou das últimas horas de tia Rose. Ela havia morrido serenamente, durante o sono, depois de uma noite em que ouvira todas as suas canções favoritas de Fred Astaire, em seus discos cheios de estalos. Ao se extinguir o último acorde da última melodia, ela se levantara e abrira a porta dupla envidraçada que dava para o jardim, quem sabe querendo aspirar mais uma vez o perfume das madressilvas. Enquanto ficou parada ali, de olhos fechados, contou-me Umberto, as longas cortinas de renda tremularam em volta de seu corpo esguio sem fazer nenhum som, como se ela já fosse um fantasma. Será que fiz a coisa certa?, perguntara ela, baixinho. É claro que fez, fora a resposta diplomática de Umberto. Era meia-noite quando deslizamos pela entrada de automóveis da casa de tia Rose. Umberto já me avisara que Janice tinha chegado da Flórida naquela tarde, com uma calculadora e uma garrafa de champanhe. Mas isto não explicava o segundo carro desportivo estacionado bem em frente à porta. Espero sinceramente que não seja aquele agente funerário, comentei, tirando a mochila da mala antes que Umberto pudesse chegar a ela. Mal pronuncie as palavras, estremeci diante de minha própria irreverência. Era completamente difícil eu falar assim, o que só acontecia quando estava perto de minha irmã. Olhando apenas de relance para o carro misterioso, Umberto ajeitou o casaco como quem ajusta um colete à prova de balas antes do combate: receio que existam muitos tipos de agentes. Tão logo cruzamos a porta de entrada da casa de tia Rose, percebi o que ele queria dizer. Todos os enormes retratos do vestíbulo tinham sido retirados da parede e estavam encostados nela, como delinquentes diante de um pelotão de fuzilamento. E o vaso veneziano que sempre estivera na mesa redonda sob o lustre havia sumido. Olá, gritei, sentindo uma onda de raiva que não experimentava desde a última vez que tinha ido lá. Ainda há alguém vivo? Minha voz ecoou pela casa silenciosa, mas, tão logo o eco se extinguiu, ouvi pés apressados no corredor de cima. Apesar da corridinha culpada, porém, Janice teve que fazer sua habitual aparição em câmara lenta na escadaria larga, como diáfano vestido de verão enfatizando suas curvas sumptuosas muito mais do que se ela não estivesse usando nada. Com uma pausa para a imprensa internacional, ela jogou os cabelos compridos para trás com lânguida presunção e me lançou um sorriso desdenhoso antes de começar a descer. Ora, vejam, observou, com a voz meigamente gélida, a virgentariana ainda está viva. Só então notei o macho da semana vindo atrás dela, com o mesmo ar desgrenhado e de olhos injectados de todos os que passavam algum tempo a sós com minha irmã». In Anne Fortier, Julieta, Editorial Planeta, ISBN 978-989-657-127-6, Sextante, 2010, ISBN 978-859-929-691-2.

Cortesia de EPlaneta/Sextante/JDACT