quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Diana fez uma apresentação hoje, informou-lhe a professora Kent. Ainda estou tentando saber qual foi o título. James me lançou um olhar de esguelha, cúmplice…»

jdact e wikipedia

«(…) Como sempre, seu jeito de metralhadora me pegou desprevenida e senti minha coragem se esvair. Nada mau. Na verdade até que encheu bastante. Qual era o assunto, mesmo? Bom... Tentei sorrir. Não havia como dizer que eu tinha ignorado o seu conselho. Eu estava meio com pressa... Os olhos de Katherine se transformaram em duas fendas. Cravados em um rosto marcado pela disciplina e emoldurado por cabelos tão curtos que poderiam ter sido confundidos com um penteado da moda, seus olhos eram sempre muito vívidos e de um azul-turquesa raro, incandescente, como cristais incrustados em estanho. Na maioria das vezes eles reluziam de irritação, mas eu já aprendera que isso era também sua forma natural de interacção com pessoas que, na realidade, haviam conquistado o seu respeito. Bem nessa hora, uma onda de entusiasmo varreu o recinto. Aliviada por Katherine ter se distraído por um instante, virei-me para ver quem tinha chegado ainda mais atrasado do que eu e apesar disso ser o queridinho da festa. Mas é claro. James Moselane. Aqui!, chamou Katherine, erguendo de novo o braço no gesto impaciente de quem nunca aceita um não como resposta. Kate. James cumprimentou a grande dame com o aperto de mão que ela esperava. Obrigado pela crítica no Quarterly. Eu com certeza não mereço. Só então ele reparou em mim. Ah, Morg. Não tinha visto. Por mim, tudo bem. Porque toda vez que James Moselane entrava em algum lugar, eu levava alguns minutos para conseguir controlar os lóbulos frontais do meu cérebro. Na madura e responsável idade de 28 anos, era terrível se pegar tacteando em busca de alguma migalha de sofisticação e mais constrangedor ainda ter certeza de que todos ao meu redor haviam reparado nas minhas faces coradas e tirado a conclusão certa. Para um membro da comunidade académica, James era mais atraente do que o normal. De alguma forma, conseguira escapar à velha máxima de que o primeiro em matéria de inteligência era sempre o último em matéria de beleza. Mesmo possuindo uma massa cinzenta incrivelmente activa, sua cabeça era também coroada por uma profusão de belos cabelos castanho-avermelhados e, aos 33 anos, seu rosto sem marcas continuava a exercer um charme juvenil. Como se não bastasse, seu pai, lorde Moselane, era dono de uma das mais belas colecções de esculturas antigas do país. Em outras palavras, James era o único homem mais príncipe do que sapo que eu já conhecera. Diana fez uma apresentação hoje, informou-lhe a professora Kent. Ainda estou tentando saber qual foi o título. James me lançou um olhar de esguelha, cúmplice.
Ouvi dizer que foi bom. Grata por aquele socorro, ri e enxuguei uma gotinha da têmpora. Era uma gota de suor deixada no meu cabelo pela máscara de esgrima, mas torci para James interpretá-la como indício de uma chuveirada recente. É muito gentil. Mas quais são as novidades? Outra carta de amor suicida de alguma aluna? Bem nessa hora, a sineta do jantar tocou e todos começaram a sair da sala. As conversas foram suspensas enquanto nosso pequeno cortejo descia a escada, atravessava o pátio dos fundos sob uma chuva fina e entrava em pares solenes no grandioso refeitório da faculdade. Todos os alunos se levantaram dos bancos enquanto subíamos o corredor até à mesa dos docentes, instalada sobre um estrado nos fundos do recinto. Quando sentei na cadeira reservada para mim, tive a nítida consciência de todos aqueles olhos a me encarar. Ou o mais provável era que estivessem encarando James, que se sentou bem ao meu lado, lindo de morrer e surpreendentemente à vontade na beca preta, quase um príncipe Tudor na corte. Ânimo, garota, disse ele, entre os dentes, enquanto o responsável pelo jantar servia o vinho. Fiquei sabendo por uma óptima fonte que não teve nada de errado com a sua apresentação de hoje. Olhei para ele, esperançosa. Todos concordavam que James era um astro do mundo académico, e sua lista de publicações bastava para fazer com que a maioria dos colegas parecessem minúsculas luas em órbitas frágeis. Então por que ninguém falou nada? O que alguém poderia ter falado? James provou com deleite sua entrada. Depois de serem atacados pela sua narrativa de mulheres guerreiras suadas vestidas com botas de pele animal e biquinis de cota de malha... Eles são académicos, caramba. Fique feliz por ninguém ter enfartado. Usei o guardanapo para abafar uma risada. Eu devia ter feito uma apresentação em slides. Talvez assim finalmente tivesse conseguido me livrar do professor Vandenbosch... Morg... James me encarou com aqueles olhos. Olhos que me diziam que eu só estava vendo a pontinha de seus pensamentos. Sabe que o professor Vandenbosch tem 400 anos. Ele já estava aqui muito antes de a gente chegar e vai continuar muito depois de você e eu batermos as botas. Pare de implicar com o coitado. Ah, sério! Estou falando muito sério. Mais uma vez, seu olhar cor de mel foi além de nossa brincadeira. Morg, você tem muito talento. De verdade. Mas é preciso mais do que talento para ter sucesso por aqui. Talvez para suavizar a crítica, ele sorriu. Escute o conselho de um chef veterano: não dá para requentar para sempre a sopa velha das amazonas.  Dito isso, ele ergueu sua taça para um brinde conspiratório, mas poderia muito bem ter jogado o vinho na minha cara. Entendi». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.

Cortesia de EArqueiro/JDACT