segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A Amiga Genial. Elena Ferrante. «Não há cá nada. Nada, nada? Não. Recortou a imagem dela de todas as fotografias em que estávamos juntos, mesmo aquelas de quando eu era pequeno»

jdact e wikipedia

«Rino telefonou ‑me esta manhã, pensei que quisesse outra vez dinheiro e preparei‑me para lhe dizer que não. Mas o motivo do telefonema era outro: não sabia da mãe. Há quanto tempo? Háá duas semanas. E agora é que me ligas? O tom deve ter ‑lhe parecido hostil, embora eu não estivesse zangada nem indignada; tinha apenas uma ponta de sarcasmo. Tentou desculpar‑se mas fê‑lo confusamente, atrapalhando‑se, metade em dialecto, metade em italiano. Disse que estava convencido de que a mãe andava a passear por Nápoles, como de costume. Mesmo de noite? Bem sabes como ela é. Pois sei, mas achas normal duas semanas de ausência? Sim. Tu não a vês há muito tempo, ela piorou. Nunca tem sono, entra, sai, faz o que lhe dá na gana. Mas acabara por ficar preocupado. Perguntara a toda a gente, dera uma volta pelos hospitais, até tinha ido à polícia. Nada, a mãe não estava em parte nenhuma. Que filho tão bom! Um homem corpulento, dos seus quarenta anos, que nunca trabalhara na vida, só negociatas e esbanjamento. Imaginei o cuidado com que fizera as buscas. Nenhum. Não tinha miolos, e só gostava de si próprio. Não estará aí contigo?, perguntou‑me de súbito. A mãe? Aqui em Turim? Sabia perfeitamente o que se passava, falava só por falar. Ele é que era viajante, já viera a minha casa pelo menos dez vezes, sem ser convidado. Ao passo que a mãe, que eu acolheria com prazer, nunca saíra de Nápoles em toda a sua vida. Respondi‑lhe: claro que não está aqui comigo. Tens a certeza? Por favor, Rino, já te disse que não está. Então, para onde foi ela? Começou a chorar e deixei‑o fazer a fita de quem está desesperado, soluços que começavam por ser fingidos e se tornavam verdadeiros. Quando terminou, disse‑lhe: por favor, ao menos uma vez, comporta‑te como ela desejaria: não a procures. Mas o que estás tu a dizer? Aquilo que ouviste. É inútil. Aprende a viver sozinho e não voltes a ligar‑me também. E desliguei.
A mãe de Rino chama‑se Raffaella Cerullo, mas toda a gente a tratou sempre por Lina. Eu não, nunca fiz uso de nenhum desses nomes. Para mim, há quase sessenta anos que é Lila. Se lhe chamasse Lina ou Raffaella, assim de repente, era sinal de que a nossa amizade chegara ao fim. há pelo menos trinta anos que me diz que quer desaparecer sem deixar rasto, e só eu sei bem o que ela quer dizer. Nunca lhe passou pela cabeça uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lado. E nunca pensou em suicídio, pois repugnava‑lhe a ideia de Rino ter alguma coisa a ver com o seu corpo, de ser obrigado a ocupar‑se dele. A sua intenção foi sempre outra: queria volatilizar‑se; queria que todas as suas células desaparecessem; que dela não fosse possível encontrar nada. E como a conheço bem, ou pelo menos creio que conheço, tenho como certo que encontrou a maneira de não deixar em parte nenhuma deste mundo nem um cabelo.
Passaram ‑se dias. Fui vendo o correio electrónico e o correio normal, mas sem esperança. Sempre lhe escrevi com frequência, e ela quase nunca me respondeu. O hábito foi sempre esse. Preferia o telefone ou as longas noites de conversa quando eu ia a Nápoles. Abri as minhas gavetas, as caixas de metal onde guardo todo o género de coisas. Poucas. Deitei tanta coisa fora, principalmente o que se relacionava com ela, e ela sabe‑o. Descobri que não tenho nada dela, nem uma imagem, nem um bilhete, nem uma prendinha. Eu própria me surpreendi. É possível que em todos estes anos não me tenha deixado nada de si, ou, pior, que eu não tenha querido conservar qualquer coisa dela? É possível. Desta vez telefonei eu a Rino, fi-lo contrariada. Não atendia no fixo nem no móvel. Ligou‑me ao serão, quando lhe dava jeito. Tinha o tom de voz com que tenta causar pena. Vi que ligaste. Tens notícias? Não. E tu? Nada. Disse‑me coisas sem pés nem cabeça. Queria ir à televisão, ao programa onde se fala das pessoas desaparecidas, fazer um apelo, pedir perdão à mãe por tudo, suplicar‑lhe que volte. Escutei com paciência, depois perguntei‑lhe: viste o guarda‑fato dela? Para quê? Naturalmente, a coisa mais óbvia não lhe ocorrera. Vai ver. Foi e verificou que não havia lá nada, nem um vestido da mãe, de Verão ou de Inverno, só as cruzetas velhas. Mandei‑o procurar pela casa toda. os sapatos dela, desaparecidos. Os poucos livros que possuía, desaparecidos. As fotografias, todas desaparecidas. Desaparecidos os filmes. Desaparecido o computador, bem como as velhas disquetes que dantes se usavam, tudo, todas as coisas relacionadas com a sua experiência de feiticeira electrónica, que começara a familiarizar‑se com os computadores em finais da década de sessenta, no tempo dos cartões perfurados. Rino estava estupefacto. Disse ‑lhe: leva o tempo que quiseres, mas depois telefona‑me e diz se encontraste nem que seja só um alfinete que lhe pertença. Ligou‑me no dia seguinte, muito agitado. Não há cá nada. Nada, nada? Não. Recortou a imagem dela de todas as fotografias em que estávamos juntos, mesmo aquelas de quando eu era pequeno. Procuraste bem? Em todo o lado. Na cave, também? Em todo o lado, já te disse. Até a caixa com os documentos desapareceu. Sei lá, velhas certidões de nascimento, contratos telefónicos, recibos de contas. o que significa isto? Que alguém roubou tudo? O que procuravam? O que querem da minha mãe e de mim?» In Elena Ferrante, A Amiga Genial, 2011, Relógio d’Água, 2014, 978-989-641-479-5

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT