domingo, 16 de outubro de 2016

Domitila. Paulo Rezzutti. «Esses ingredientes eram tão comuns que são os principais de um prato conhecido até hoje como “Virado à Paulista”»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Quando Domitila nasceu, em 1797, São Paulo jazia sonolenta no topo da colina do Colégio fundado pelos jesuítas no século XVI, embalada pelo gemer característico do carro de boi. A outrora vila que abrigara a raça de gigantes, os bandeirantes, havia se transformado numa cidade caipira, passagem de bens, sobrevivendo à custa de impostos sobre os géneros que transitavam pelo seu entroncamento em direcção a Rio, Santos, Minas e sul do Brasil. Apesar de centro administrativo da capitania, estava longe de parecer que se transformaria na metrópole actual. A região mais densamente povoada, que conhecemos hoje como bairro da Sé, tinha pouco mais de cinco mil habitantes. Se somados aos das demais freguesias que compunham a cidade, como São Bernardo, Guarulhos, Cotia, entre outras, chegariam a, aproximadamente, 20 mil pessoas, o suficiente para ocupar um quarto do estádio do Maracanã. A área urbana era confinada entre os rios Tamanduateí, de um lado da colina, e Anhangabaú, do outro. As construções que delimitavam a região central e o início das chácaras eram os conventos do Carmo, São Francisco e São Bento. Ao longe, além dos rios, era possível avistar trechos de mata nativa, de onde sobressaíam araucárias e palmeiras. O término das obras da Calçada do Lorena, nova via moderna, pavimentada, que ligava a vila de São Paulo e o porto de Santos, tinha apenas cinco anos em 1797. O caminho sofria, do mesmo modo como os anteriores, com as fortes chuvas da serra do Mar e com deslizamentos; porém era mais rápido e eficiente que o antigo Caminho do Padre José de Anchieta. Por essa estrada desciam os principais produtos de exportação da capitania: açúcar, carne-seca, aguardente, entre outros, a riqueza que viria com o café ainda estava distante; serra acima subiam os produtos importados para abastecer a cidade, como sal, vinho português, vidros, ferragens e tecidos. As cargas eram transportadas no lombo de mulas conduzidas pelos tropeiros, homens rudes cobertos por ponchos e chapéus de couro de abas largas e desabadas sobre o rosto. Possuíam, em sua maioria, pouco além da roupa do corpo. São Paulo, nessa ocasião, além de trilhas, travessas e becos, contava com poucas ruas mal calçadas por pedra bruta, como Direita, São Bento, Carmo, Quitanda, Cadeia, das Casinhas, Boa Vista, São Gonçalo, Pelourinho, Rosário e da Freira. O calçamento bruto acabou adestrando a mulher paulista a um andar faceiro, registado pelos viajantes. Na verdade, o passo leve e seguro era para evitar que torcessem os delicados tornozelos nas pedras.
Os raros viajantes que por essas ruas transitaram puderam admirar a limpeza que imperava na cidade. O paulista utilizava fossas negras, não se servia dos tigres, escravos que esvaziavam barris de excrementos no mar, como no Rio de Janeiro e em Santos. Os escravos eram pouco mais de 24% da população, número baixo se comparado ao de cidades grandes da época, como Rio e Bahia. Os viajantes, se estrangeiros, eram recebidos por crianças em algazarra, interessadas em saber se eles tinham o mesmo número de dedos que os habitantes da terra. Raras eram as casas de pedras ou tijolos. Os prédios eram construídos pelo método de taipa de pilão, onde o barro e outros elementos eram socados dentro de moldes de madeira com a espessura que a parede deveria ter. As construções, habitualmente de dois andares, eram dotadas de balcões, por onde o paulista tomava a fresca protegido dos olhares curiosos por detrás das rótulas e dos muxarabis, peças treliçadas que permitiam preservar a intimidade da residência. As casas eram pintadas geralmente de branco, rosa ou amarelo. Por dentro, a casa do paulista era severa, sem a elegância que o viajante poderia encontrar em regiões do Rio, Minas, Bahia, Pernambuco ou Maranhão. Vetustas cadeiras coloniais eram colocadas numa fileira, geralmente ocupada pelos homens, enquanto as mulheres, sentadas em sofás de palhinha, faziam trabalhos de agulha à luz de candeeiros de latão abastecido com óleo de rícino, mas somente se não houvesse visitas, pois, normalmente, elas não frequentavam a mesa diante de hóspedes, ou a sala na ocasião em que forasteiros pediam pouso. Era comum encontrar à mesa paulista feijão, toucinho, farinha e carne de porco, além de linguiça defumada e a onipresente couve, que seria bastante amaldiçoada pelo poeta Álvares Azevedo anos mais tarde ao vê-la até no café da manhã. Esses ingredientes eram tão comuns que são os principais de um prato conhecido até hoje como Virado à Paulista. As frutas, como a laranja, eram acrescentadas aos pratos salgados, como o próprio virado. A mistura agridoce era uma constante na mesa de São Paulo, onde a abóbora acompanhava a carne de porco e a polivalente banana, frita com canela e açúcar, virava sobremesa; crua, misturavam com o feijão». In Paulo M. Rezzutti, Domitila, 2012, Geração Editorial, São Paulo, 2013, ISBN 978-853-940-089-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT