quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião, de Gregório Lopes. Luísa Trindade. «… de autor desconhecido, o quadro, hoje cortado em duas telas, representa a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa»

Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa (c1570_1590)
jdact e wikipedia

«Entre 1536 e 1539, o pintor régio Gregório Lopes realizava para a Charola do Convento de Cristo, em Tomar, uma tábua representando o martírio de S. Sebastião. Integrada no âmbito da ampla reforma espiritual e material da casa religiosa, iniciada por Manuel I e continuada por João III, a escolha do tema, de raízes profundas na tradição do ocidente medieval, terá, porventura, obedecido igualmente a razões de carácter circunstancial: em primeiro lugar, a proximidade espiritual à principal vocação do Santo, militar e defensor da igreja, particularmente adequada a uma ordem monástico-militar como a de Cristo, sobretudo num momento em que se revia a regra à luz dos princípios fundacionais do cristianismo; em segundo lugar, a renovada importância que a figura de S. Sebastião despertava na década de trinta do século XVI. De facto, a devoção já longa a este mártir romano como protector contra a peste, flagelo que por esses mesmos anos assolava o reino e, com especial violência, a capital, ganhava um novo alento com a chegada de uma importante relíquia: o braço de S. Sebastião que, supostamente saqueado a uma igreja milanesa, fora trazido de Roma para Lisboa em 1531. Do seu sucesso contra as epidemias, dá conta Francisco Holanda quando, em 1571, refere os 40 anos que a cidade gozou de imunidade graças ao poder propiciatório da referida relíquia. É aliás a sua extrema relevância que, porventura, explica a lenda posta a circular logo no século XVII de que fora oferecida a João III pelo imperador Carlos V, seu cunhado. Desta tábua, já exaustivamente estudada no âmbito do universo pictórico por diversos autores, interessa-me focar um aspecto particular do discurso formal: a arquitetura que, em plano de fundo, encerra o campo figurativo e serve de cenário ao martírio do Santo.
De acordo com a tradição iconográfica, o episódio do primeiro martírio de S. Sebastião, atado a uma coluna ou árvore e rodeado de vários archeiros que sobre ele disparam uma intensa chuva de flechas, ocorre num espaço aberto com uma cidade por fundo. A partir do século XV, e sobretudo por via italianizante, a urbe representada é usada para contextualizar espacialmente a narrativa: a cidade de Roma, palco do suplício do guarda pretoriano. Ruínas clássicas, pórticos e colunatas ou edifícios de grande porte e planta centrada, constituem um expediente comum aos pintores do renascimento que assim aliam à marcação espacial a oportunidade de evocar directamente esse mundo aberto à pesquisa que era então a Antiguidade. Opção menos frequente no norte da Europa, onde as arquitecturas fundeiras replicam preferencialmente as cidades flamengas em que se movem os próprios artistas.
Por vezes conjugam-se tempos e realidades diferentes como no martírio de S. Sebastião da autoria de Luca Signorelli, onde a cidade medieval surge inconfundível por entre múltiplas e imponentes ruínas romanas. E tal não se deve apenas ao princípio de coetaneidade que tão frequentemente caracteriza as representações da época, particularmente visível, por exemplo, nas vestes ou cortes de cabelo das figuras. No caso do espaço urbano, e concretamente na representação do casario vulgar, a coetaneidade seria expectável se pensarmos que em 1498 o conhecimento da cidade clássica se reduzia praticamente aos edifícios de prestígio, as grandes ruínas ainda acessíveis, aliás entusiasticamente estudadas pelos próprios artistas modernos. A cidade comum, o casario em extensão, só a partir dos finais do século XVIII e das primeiras campanhas arqueológicas no Sul de Itália, seria minimamente conhecido.
Também Gregório Lopes combina as duas tendências na sua tábua, a flamenga e a italiana, ou, de forma mais precisa, a cidade coeva e a cidade antiga. A estrutura narrativa divide-se em vários registos justapostos: três em profundidade, três outros em superfície. A cena principal ocupa o primeiro plano, com o Santo ao centro da composição, ladeado pelos seus algozes; Santo e coluna constituem um eixo vertical que divide a tábua em duas partes: à direita, toda uma estrutura formal que convoca a Roma das perseguições de Diocleciano, materializada na grande rotunda directamente inspirada, como bem viu Paulo Pereira, na edição de 1521 de César Cesariano do tratado de Vitrúvio, mas também pela visão longínqua de outros martírios que a coluna de fumo não deixa passar despercebidos; na metade contrária, preenchendo todo o lado esquerdo do campo figurativo e despida de qualquer nota clacissizante, surge a cidade corrente ou do quotidiano, onde a vida parece decorrer indiferente ao drama que, simultaneamente, ocorre em primeiro plano.
Ora é justamente essa cidade, aparentemente feita de casario anónimo e indiferenciado, que me parece justificar uma nova atenção em função da recente identificação de uma outra pintura igualmente quinhentista. Refiro-me ao quadro pertencente à Kelmscott Manor Collection que, em Novembro de 2010, integrou uma exposição dedicada a marfins cingaleses do século XVI realizada no Museu Rietberg de Zurique, entre cujos curadores se encontrava Annemarie Jordan Gschwend, responsável pelo seu reconhecimento temático. Datável das últimas décadas do século XVI e de autor desconhecido, mas ao que tudo indica de origem flamenga, o quadro, hoje cortado em duas telas, representa a Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa. Se dúvidas restassem, a famosa grade que no século XVI separava a área dos cambistas e que, por tão marcante, viria a justificar o outro topónimo por que ficou conhecida, Rua Nova dos Ferros, seria suficiente para garantir o reconhecimento daquela importante artéria de Lisboa». In Luísa Trindade, Uma outra representação da Rua Nova dos Mercadores, em Lisboa: a tábua do martírio de S. Sebastião de Gregório Lopes, Revista Medievalista, Nº 20, JUL-DEZ, 2016, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT