sábado, 15 de outubro de 2016

Os Pecados da Rainha Santa Isabel. António Cândido Franco. «Timidamente se desenhou então no horizonte um caminho laico de tolerância religiosa, capaz de trazer à comunhão dos fiéis todos aqueles que haviam sido arredados à força»

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«(…) Ainda assim, contra as opiniões que lhe indicavam o trilho da guerra, ele preferiu a diplomacia. Seguiram mensagens para o papa, requerendo a suspensão da cruzada em nome do bom entendimento entre cristãos e dos direitos da coroa de Aragão. Como o papa lhe negasse requerido tão cortês como discreto, voltou-se para o estado-maior da cruzada, pedindo explicações e exigindo satisfação rápida duma folha de encargos. Aguardou resposta, com ânimo favorável. Em vez de palavras cordatas, chegaram porém notícias de novas atrocidades. Os cruzados entretinham-se agora, nas invernias pirenaicas, a acender fogueiras para consumir heréticos. Tinham a bênção fervorosa de Domingos Gusmão, o encarniçado pregador, vestido de hábito branco de lã e capeirão negro, que fora o primeiro a chegar à região em nome do papa. Pensavam assim limpar no fogo o escol da organização cátara, ao mesmo tempo que aproveitavam para reduzir a cinzas a incómoda aristocracia local. Eis o parto petulante e interesseiro do auto-de-fé. Em Minerve foram consumidos no lume cerca de cento e quarenta relapsos. Em Carrés mais sessenta e por fim em Lavaur, corria já a Primavera de 1211, acendeu-se a mais gigantesca labareda que ainda se vira no Sul da Gália. Seiscentas pessoas foram torradas nessa extraordinária queimada humana, que durou muitos e muitos dias e consumiu, diz-se, metade da floresta do Limousin.
Chegaram a Aragão os restos da combustão. Os frios ventos dos Pirenéus levavam-na sua flor a enxudiosa exalação dos torresmos humanos. Um frémito de horror e de repulsa correu as alcáçovas dos senhores, bateu as ruas das vilas e chegou às pobres choupanas da gleba. Todos se perguntavam que vento de loucura tomara conta dos bárbaros barões do Norte e dos desapiedados homens da Igreja para assim tresvariarem. Por fim, quando os primeiros fugitivos confirmaram em estado de choque os mais alucinados relatos, o tumulto do povo e dos senhores levantou-se escandalizado e revel contra os cruéis padecimentos dos condados vizinhos. Nem nas correrias dos almogávares e dos mouros se viu maldade tamanha, diziam alguns. E assim era. O rei de Aragão azedou de vez com tal desatino. O avô, Raimundo Berengário, tivera relações próximas com o imperador Frederico I, da família Hohenstaufen. Escorara a restauração do sacro império romano-germânico e lastimara a posterior vitória do papa Alexandre III sobre o monarca. De qualquer modo a luta entre gibelinos e guelfos, entre partidários do império e da teocracia papal, ficara em aberto, não tomando ponto com a derrota do Barba Ruiva. A casa Hohenstaufen não desistia de vituperar os costumes do papa, de invectiyar a sua sede desmedida de poder temporal, de exprobrar as violências da Igreja, bastas vezes para bordar uma cortina que apagasse as suas. Defendiam que o clero romano devia estar sujeito à jurisdição leiga e ao pagamento de impostos à coroa. Eram então estes os pontos do desacordo entre império e papado. A feroz perseguição dos valdenses por Roma, no tempo de Lúcio III, articulando as primeiras disposições jurídicas para a instalação dum tribunal inquiridor da fé, emprestara nova força às propostas do império, mostrando como à sua causa, sufragada pelas correntes naturais, se adequava melhor ao movimento interno da Cristandade que o projecto teocrático do papa. Timidamente se desenhou então no horizonte um caminho laico de tolerância religiosa, capaz de trazer à comunhão dos fiéis todos aqueles que haviam sido arredados à força.
A casa de Aragão, pelos interesses que tinha no Mediterrâneo, pela experiência na administração plural de judeus e muçulmanos em território peninsular, pela proximidade das cidades do norte da Itália, fora desde início um dos principais esteios do projecto gibelino dos Hohenstaufen. Ainda há pouco, o herdeiro destes, o futuro Frederico II, escolhera para casar uma princesa aragonesa, Constança, que enviuvara de Emerico da Hungria. Com tais passos, não escandaliza que o rei de Aragão se enfurecesse com as insídias dos cruzados franceses. Logo que delas tomou certeza, enviou um emissário a Simão de Monforte dando-lhe ordem de retirada imediata. Uma grossa parcela dos condados da Gália meridional pertencia-lhe e uma tal desordem significava um atentado aos seus direitos de suserania. Caso o francês voltasse costas, era a guerra; Pedro de Aragão declarava juntar-se aos heréticos, para expulsar os peões do rei de França daquilo que tinha por seu. Nessa altura as pequenas cidadelas na posse da pequena nobreza rural, a mais identificada com a pregação do clero cátaro, haviam sido quase todas pilhadas e ocupadas, depois de sofrerem o duro assédio dos cruzados. Parte da população estava em fuga e a resistência desorganizava-se, vítima daquela onda impetuosa e feroz que tudo estraçava no caminho. Uma nova milícia, baptizada de Confraria Branca, fora criada pelo terrível bispo cisterciense de Toulouse, Folquet Marseille, para bater as matas e enforcar todo aquele que fosse apanhado em fuga». In António Cândido Franco, Os Pecados da Rainha Santa Isabel, Ésquilo, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-809-289-2.

Cortesia de Ésquilo/JDACT