quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV. Maria Ângela Beirante. «… tresladado em 1689 para o Tombo das Cappellas da Igreja de São João da Villa de Coruche que se conserva no Arquivo Distrital de Santarém»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O presente artigo parte da análise dos compromissos de três capelas instituídas, no século XIV, em duas igrejas da vila de Coruche, por três donas (todas de nome Maria) que pertenceram à elite local. Nos seus testamentos avultam dois grandes objectivos: assegurar a salvação das suas almas e perpetuar as suas memórias».

«As fontes que serviram de suporte a este trabalho são os títulos de três capelas instituídas, no século XIV, na vila de Coruche (sentido medieval de capela: instituição de sufrágios perpétuos por alma do instituidor, que obriga parte do seu património à igreja onde funda a capela, podendo, em alguns casos, ser acompanhada da edificação de um altar ou capela onde sejam celebrados os sufrágios). Os documentos originais que são os testamentos ou compromissos das capelas tiveram uma vida acidentada. Submetidos a cópias e públicas-formas durante os séculos XIV e XV, foram, em 1535, transcritos para o Tombo de todalas cappellas situadas na igreja de S. João, no qual foram introduzidos os autos de medição dos respectivos bens. Por sua vez, o tombo quinhentista foi tresladado em 1689 para o Tombo das Cappellas da Igreja de São João da Villa de Coruche que se conserva no Arquivo Distrital de Santarém (os documentos relativos à capela de Maria Eanes Garavinha foram, em 1621, integrados no Tombo 2.º das Cappelas da Coroa (TT), onde o testamento é parcialmente transcrito). É sob esta forma que os conhecemos e, ao tentarmos recuperar esta fonte histórica estamos conscientes dos riscos que a sua utilização comporta. De facto, as vicissitudes por eles sofridas deixaram marcas indeléveis nos textos conservados. São frequentes as adulterações de termos e os erros de cópia que suscitam, como é óbvio, incontornáveis dúvidas de leitura e de interpretação. Apesar de tudo, consideramos que o conteúdo essencial dos documentos se manteve e seria insensato da nossa parte rejeitarmos, por inúteis ou desnecessários, os textos que tantas gerações teimaram em preservar.

As igrejas de Coruche
Situada dentro dos antigos limites da diocese de Évora, Coruche foi, desde a reconquista cristã, afecta à ordem de Avis. Com efeito, logo em 1176, Afonso Henriques doa ao mestre Gonçalo Viegas, entre outros bens, o castelo de Coruche. Em 1181, o mesmo rei reafirma esta doação que não inclui o senhorio da vila. Este pertencia ao rei que, em 1182, concedeu carta de foral aos seus habitantes. Em 1248, existiam em Coruche três igrejas paroquiais: S. João, S. Pedro e S. Miguel, cujos padroados foram doados por Afonso III à ordem de Avis. A primeira situava-se na Praça, a segunda, no local onde ainda se mantém, enquanto a localização atribuída à igreja de S. Miguel não nos parece convincente (corresponderia à actual ermida de Santo António; noticia-se que a igreja de S. Miguel tinha caído e que, por memória da mesma, se erguera um altar em honra daquele orago na igreja de S. João; não parece lógico que se tenha reconstruído a velha igreja de S. Miguel para a dedicar a Sto. António, quando o próprio S. Miguel tinha de ser hospedado na igreja de S João; pertencendo o castelo à ordem de Avis e dada a preferência das igrejas desta invocação pelos espaços acastelados, admitimos, como hipótese, que a igreja de S. Miguel possa ter existido no castelo). Em 1250, pelo contrato celebrado entre a ordem e o bispo de Évora acerca dos direitos episcopais sobre as igrejas de Coruche, ficamos a saber que elas deviam pagar a terça parte dos seus rendimentos em pão, vinho, azeite, gado e dinheiro das oblações e ainda 24 maravedis de procuração cada uma. O reconhecimento destes direitos por parte da ordem de Avis nem sempre foi pacífico, mas em 1280 o próprio comendador de Coruche, João Rodrigues, com o mestre Simão Soares e o comendador-mor Egas Martins, em nome do convento de Avis, propõem-se meter o bispo e o cabido de Évora em posse das terças das igrejas, incluindo as morturas ou legados dos defuntos. Em 1320, as igrejas de Coruche auferiam ainda módicos rendimentos anuais, cabendo o primeiro lugar à igreja de S. João, seguida pelas de S. Miguel e de S. Pedro. Foi precisamente nas duas primeiras igrejas que as capelas em análise foram instituídas. Em 15 de Outubro de 1339, Maria Raimundo fazia testamento e fundava capela em S. João. Em 3 de Dezembro de 1348, Maria Simões ordenava capela na mesma igreja. Em 19 de Maio de 1394, Maria Eanes Garavinha realizava o seu testamento, instituindo capela em S. Miguel.

Identificação das instituidoras
Tentemos, com base nos seus testamentos e nos inventários dos seus bens, identificar estas três donas, por sinal todas chamadas Marias, que, na centúria de Trezentos, fundaram capelas em duas das igrejas de Coruche. Desde logo, o facto de instituírem capelas indicia-as como personagens relevantes da elite local (um mecanismo social de grande importância, destinado a preservar para a eternidade o prestígio e a fortuna de determinadas famílias). Depois, a circunstância de serem todas viúvas e abastadas e, ao que parece, sem filhos, faz delas potenciais benfeitoras das instituições eclesiásticas. De facto, parte considerável do património eclesiástico provinha de doações femininas, a ponto de alguns governos de cidades medievais estabelecerem a quantia máxima que as viúvas ricas podiam doar à Igreja, evitando assim que delapidassem seus bens em detrimento da família. Em Portugal, as conhecidas leis contra a amortização, que ultrapassavam, de longe, o âmbito das doações piedosas das viúvas, reflectem o mesmo conflito de interesses entre famílias nobres e Igreja, tomando os reis as primeiras sob a sua protecção». In Maria Ângela Beirante, Salvação e Memória de Três Donas Coruchenses do século XIV, Território do Sagrado, Edições Colibri, 2011, ISBN 978-989-689-109-1.

Cortesia de EColibri/JDACT