quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Fica Comigo esta Noite. Inês Pedrosa. «Não sabia como. Há pelo menos vinte anos que não tenho o teu telefone. Um dia desisti de ti. Tive medo de deixar de fazer parte do mundo»

jdact e wikipedia

«(…) Tantas vezes te pedi: diz-me que me amas, diz só uma vez. Mesmo que seja mentira. Diz-me. Só para eu guardar o som da tua voz a dizer essa palavra. Tinha vinte e três anos, e tu tinhas vinte e nove. Depois dos trinta, deixei de te fazer declarações de amor. Julgava-me madura, ardilosa, pensava que bastava prescindir das palavras para não te perder. Mas não eram as minhas palavras que te perdiam. Tu eras um pintor e já não ias ser pintor. Lias nos meus olhos que já não ias ser pintor. Só com o tempo foste lendo o resto, o resto dos restos que era tudo: que eu sabia que tu eras pintor. O artista do meu corpo secreto, uivante, um tecido de fios de luz que só os teus dedos acendiam, e rios, rochas, relvados amaciados pela tua língua, uma asa à medida do teu voo, uma casa em que tu moravas de todas as maneiras. Falavas pouco, quase nada, por isso me lembro tanto das tuas palavras todas: este apartamento já conheço, podemos passar ao outro?, perguntaste. Se eu contasse às minhas amigas que as tuas palavras eram estas, apenas estas, sussurradas com um sorriso trocista de timidez, elas fariam troça de mim. De nós. Por isso contei apenas o essencial: que tu me fazias sentir bela. Que conseguiste que eu me sentisse bela a vida inteira.
De cada vez que o espelho me anunciava mais uma marca do tempo, mais uma prega na carne, eu acariciava-a com os teus dedos, sentindo o prazer que tu sentirias, ao descobrires novas rotas no mapa do meu corpo. No início, dizias-me também às vezes: és tão nova. Não era um elogio; havia um tom de decepção ou desencontro nesse teu comentário. E eu tinha pressa de encarquilhar, de envelhecer até ficar parecida com as mulheres que amaras antes de mim. Nunca me elogiaste. Encontrávamo-nos por causa do Partido, levavas-me para tua casa, com os pretextos mais nevoentos, um debate político na televisão, o ofício que ias entregar no ministério, e quando fechavas a porta começavas a beijar-me. As pálpebras, o lóbulo da orelha, a curva do pescoço ou o espaço entre os dedos. Só sexo. Nunca começavas como nos filmes. Também nunca perguntaste essas patetices deprimentes que as pessoas copiam dos filmes: foi bom? Saí do consultório e pensei que tinha de te encontrar. Não sabia como. Há pelo menos vinte anos que não tenho o teu telefone. Um dia desisti de ti. Tive medo de deixar de fazer parte do mundo, de continuar sozinha contigo, só sexo. Conheci um homem que seria indigno trair, um homem que me seduziu porque era o oposto de ti. E decidi ser feliz. Sei vagamente onde moras, ou onde moravas, há cerca de cinco anos cruzei-me com a tua mulher numa festa e percebi que ela dizia: desde o meu divórcio. Claro que podia estar a falar do seu primeiro casamento. Mas como mudou de assunto assim que me viu, pareceu-me que só podia estar a falar de ti. Nunca fomos apresentadas, eu e a tua mulher, ou ex-mulher. Mas eu sei que ela sabe muito de mim. Os olhos da mulher de um homem que nos ama são indiscretos. Também nos olhos dela encontrei o teu amor por mim. Amor não é a palavra exacta. Amor é o que eu sinto pelo meu neto, pelos meus filhos, pelo pai deles, até pelo meu cão. Pobre cão. Se calhar vai deixar de comer quando eu morrer. Vai ficar sentado à porta, esperando por mim até à morte. Os cães não conhecem a morte, por isso podem morrer de amor. Ficam à espera até ao fim, não se deixam consolar. Tu tens alma de cão vadio, sabes amar sem desconsolo. Se fosses morrer daqui a dois ou três meses, como eu, saberias fazer-te encontrado comigo? Talvez soubesses. Da última vez que te vi, há nove anos, no cinema, aproximei-me para te pedir um cigarro e disse-te, mesmo antes de ti: que disparate; deixaste de fumar há uma semana, bem sei, desculpa. Como é que sabes?, perguntaste-me, atónito. Sorri, encolhi os ombros, não cheguei a responder-te. Como é que eu sabia? Ora, como sei tudo de ti. Através dos sonhos. Agora sento-me no café em frente ao ministério, à espera que tu saias e venhas ter comigo. O ministério mudou de nome, mas de certeza que tu ainda lá trabalhas. Sempre foste um homem de hábitos e nunca cultivaste grandes ambições. Peço uma bica e começo a fazer contas. Oxalá a tua ambição tenha sido pelo menos suficiente para te afastar da pré-reforma. Também não te imagino em casa, a fazer palavras cruzadas o dia inteiro. Do Partido desististe muito antes da moda da renovação.
Cinco e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro, falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo, e dizes: tens outra vez o cabelo muito comprido. Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como me vai ser útil esse teu elogio, nos meses que faltam. Comprarei um cabelo igual para tu veres. Neste, ainda o meu, quero que mexas. Prendo-te a mão ao meu cabelo. Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja, prometes uma vez mais que um dia me ensinarás a gostar de cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se Cinco e trinta e cinco. Lá vens tu, de pasta na mão, com o mesmo andar sorrateiro, falsamente tímido, de rapaz antigo. Entras no café. Levanto-me. Os teus olhos crescem e iluminam-se para me ver. Acaricias-me o cabelo, e dizes: «Tens outra vez o cabelo muito comprido.» Isto é um elogio. Nem tu sabes ainda como me vai ser útil esse teu elogio, nos meses que faltam. Comprarei um cabelo igual para tu veres. Neste, ainda o meu, quero que mexas. Prendo-te a mão ao meu cabelo. Falamos de coisas soltas, bebes uma cerveja, prometes uma vez mais que um dia me ensinarás a gostar de cerveja. Depois pegas na pasta e perguntas se por acaso não quero ir até lá a casa ver umas fotografias dos tempos antigos. Fechas a porta e começas a beijar-me, primeiro os olhos, depois o lóbulo da orelha, depois o pescoço, enquanto os teus dedos me abrem a camisa e me procuram os seios. Beijamo-nos de olhos abertos, como sempre, e é de olhos abertos que procuro cada uma das novidades do teu corpo, os sítios onde a tua pele dobra, o cheiro agora mais adocicado do teu sexo. Entramos um no outro de olhos abertos, como se mergulhássemos num mar de silêncio e fogo escuro. A meio da noite peço-te que me deixes ficar contigo um mês, só um mês, prometo. Posso?. Não me respondes, claro. A não ser que os beijos sejam uma resposta, e eu preciso de acreditar que sim. Preciso dessa vida verdadeira que escondi debaixo da tua pele, antes que o cabelo me caia, antes que comecem os enjoos e as dores, antes que o meu corpo seja tomado pelo cheiro miserável da doença. Talvez para morrer eu precise do amor e da família. Mas para acabar de viver, só preciso de ti, desta febre azul a que os outros chamam só sexo». In Inês Pedrosa, Fica Comigo esta Noite, Publicações dom Quixote, 2003, ISBN 978-972-202-601-7.

Cortesia de PdomQuixote/JDACT