sexta-feira, 5 de maio de 2017

A Cruz, a Espada e a Sociedade Medieval Portuguesa. Sidinei Galli. «Os princípios definidos no “Dictatus Papae” possibilitam a centralização do poder eclesiástico sob a autoridade do papa»

jdact e wikipedia

«(…) O desenvolvimento económico, a distribuição da população e a organização paroquial da região (Douro e Minho) podem ser explicados nos meados do século XI pela persistência das paróquias do tempo visigótico e dos inúmeros núcleos populacionais. As lutas internas e a guerra contra os muçulmanos ruíram a organização administrativa e militar, mas mantiveram a organização paroquial e diocesana, com os fiéis reunidos em volta das igrejas e unidos ao prelado.
A organização eclesiástica portuguesa, a partir do século XII, apresenta um quadro complexo: de um lado, os bispos, os cónegos e a corporação dos clérigos; de outro, o clero paroquial e os padroeiros leigos. Em 1073, o monge Hildebrando, filho de camponeses de Toscana, membro da ordem de Cluny, foi aclamado papa sob o nome de Gregório VII. Novas directrizes são traçadas e inicia-se a reforma da igreja, segundo a qual a autoridade do papa é considerada universal e ilimitada. A reforma da igreja ocidental, a reconquista cristã na Península Ibérica, o restabelecimento da unidade religiosa com o oriente, são alguns dos pontos considerados necessários ao desenvolvimento da política do Sumo Pontífice.
Os princípios definidos no Dictatus Papae possibilitam a centralização do poder eclesiástico sob a autoridade do papa. Para realizar a reforma da igreja, para serem respeitados os decretos pontifícios pelos bispos, clérigos e leigos, era indispensável o estabelecimento de fortes elos que ligassem a Roma as igrejas e reinos do ocidente. Essa incumbência caberá às ordens monásticas religiosas francesas, como as de Cluny e de Cister. Os monges de Cluny, empenhados na execução da política do papa Gregório VII (Reforma Gregoriana) aceleram o processo da reconquista ibérica, incitando os monarcas cristãos na luta contra os muçulmanos. O desastre de Zalaca (1086) fez com que Afonso VI voltasse as suas vistas para a França e precipitasse a vinda para as regiões ibéricas de cavaleiros franceses impregnados do espírito cluniacense de cruzada. A presença da ordem de Cluny em terras ibéricas já se manifestara anteriormente, pelo casamento de Afonso VI com Constança de Borgonha sobrinha do abade Hugo de Cluny.
A anarquia reinante numa igreja submetida no crescente poder temporal, a indisciplina dos suseranos feudais e, sobretudo, a ausência de uma unidade religiosa, com bispos transformados em verdadeiros senhores feudais, fraccionam o poder da Santa Sé. Os senhores da igreja, aliados de príncipes e nobres, mais do que à sua instituição, serviam aos interesses da ordem feudal. Neste contexto, já adverso às aspirações da igreja cristã ocidental, acrescenta-se a presença do mouro nas regiões da Península Ibérica. O infiel sarraceno constituía um corpo estranho no orbis christianus, daí a necessidade de combatê-lo, segundo as forças cristãs. De acordo com a ética bélica medieval cristã, a guerra justa contra o infiel representa a sustentação das próprias comunidades cristãs ibéricas. O papa Alexandre II dizia pode-se combater justamente os sarracenos pois eles perseguem os cristãos e os expulsam da cidade e lar. A guerra justa, revestida de traços religiosos, assume o carácter de juízo divino sobre a injustiça.
Nos fins do século XI, a Europa atinge um período de rápido desenvolvimento económico, que marca o ápice do feudalismo e o colapso do monopólio cluniacense. A expansão provoca uma diversificação de oportunidades e de formas de vida, proporcionando novas possibilidades para a organização das actividades humanas. O declínio cluniacense permite a ascensão de Cister, cujos monges buscam o isolamento completo do mundo, o retorno à pureza beneditina, a austeridade no modo de vida e nos costumes da sociedade e dos mosteiros.
Os cistercienses associaram-se às necessidades militares do reino de Portugal na luta contra o mouro, na defesa dos territórios conquistados no povoamento e arroteamento de extensas regiões ermas. As exigências que se impunham ao reino pobre e escassamente povoado permitiram o incremento da ordem. Ganham ressonância as actividades agro-pastoris que serão desenvolvidas pela ordem nas regiões incultas (Cod. 886, Biblioteca Pública do Porto, cap.17). Os monges de Cister propuseram fecundar a terra com trabalho; transformar em campo fértil a gleba inculta; substituir o bosque improdutivo por vinhedos e olivais, atrair e fixar colonos, pois o crescimento populacional seria o melhor estímulo para a intensificação da actividade produtiva. Esses elementos identificaram os meios manipulados pelos viri religiosi na sua tarefa de povoar e agricultar o solo portugalense, num momento de agitação vivido pela precoce nação, envolvida por guerras, lutas civis e por uma população escassa, rústica, pobre e com profundo espírito de religiosidade cristã. O desejo de conquistar por parte da realeza e nobreza superou o de colonizar que foi, em parte, realizado pelos monges. Como diz Alexandre Herculano a ideia do ferro se associa quase sempre à da espada e raramente à do arado». In Sidinei Galli, A Cruz, a Espada e a Sociedade Medieval Portuguesa, edição do Autor, História, volume 28, Universidade Aberta, Editora Arte e Ciência, Biblioteca da FCL, 1997.

Cortesia da UAberta/JDACT