quarta-feira, 17 de maio de 2017

A Trégua. Mario Benedetti. «Às quatro da tarde, senti-me de repente insuportavelmente vazio. Tive de pendurar o casaco de lustrina que se usa no escritório»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Talvez, no fundo, eles se ámem bastante, embora isso de amor entre irmãos traga consigo a quota de exasperação mútua que o costume provoca. Não, não se parecem comigo. Nem sequer fisicamente. Esteban e Blanca têm os olhos de Isabel. Jaime herdou dela a testa e a boca. O que Isabel pensaria se pudesse vê-los hoje, preocupados, activos, maduros? Tenho uma pergunta melhor: o que eu pensaria, se pudesse ver Isabel hoje? A morte é uma experiência aborrecida; para os outros, sobretudo para os outros. Eu deveria me sentir orgulhoso por haver ficado viúvo com três filhos e ter conseguido seguir adiante. Mas não me sinto orgulhoso, e sim cansado. O orgulho é para quando se tem 20 ou 30 anos. Seguir adiante com os meus filhos era uma obrigação, o único escape para que a sociedade não me encarasse e me dedicasse o olhar inexorável que se reserva aos pais desalmados. Não havia outra solução, e eu segui adiante. Mas tudo sempre foi por demais obrigatório para que pudesse sentir-me feliz.
Às quatro da tarde, senti-me de repente insuportavelmente vazio. Tive de pendurar o casaco de lustrina que se usa no escritório e avisar ao sector de pessoal que precisava passar pelo Banco República para resolver aquele assunto do capital de giro. Mentira. O que eu não suportava mais era a parede em frente à minha escrivaninha, a horrível parede ocupada por aquela enorme folhinha com um Fevereiro dedicado a Goya. O que faz Goya nessa velha casa importadora de autopeças? Não sei o que teria acontecido, se eu tivesse permanecido olhando a folhinha como um imbecil. Talvez gritasse, ou iniciasse uma das minhas costumeiras séries de espirros alérgicos, ou simplesmente submergisse nas esmeradas páginas do Livro-Razão. Porque já aprendi que os meus estados de pré-explosão nem sempre conduzem à explosão. Às vezes terminam numa humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e de suas diversas e agravantes pressões. Gosto, no entanto, de me convencer de que não devo permitir-me explosões, de que devo travá-las radicalmente, sob pena de perder o meu equilíbrio. Então saio como saí hoje, numa encarniçada busca do ar livre, do horizonte, de sei lá quantas coisas mais. Bom, às vezes não chego ao horizonte e me conformo com o acomodar-me à janela de um café e registar a passagem de algumas pernas bonitas.
Estou convencido de que, durante o expediente, a cidade é outra. Conheço a Montevidéu dos homens com horário, os que entram às oito e meia e saem às 12, os que retornam às duas e meia e vão embora definitivamente às sete. Esses rostos crispados e suarentos, esses passos urgentes e tropeçantes são meus velhos conhecidos. Mas existe a outra cidade, a das frescas moçoilas que no meio da tarde saem recém-banhadinhas, perfumadas, desdenhosas, optimistas, espirituosas; a dos filhinhos da mãe que acordam ao meio-dia e às seis da tarde ainda trazem impecável o colarinho branco de tricolina importada; a dos velhos que tomam o autocarro até a Aduana e depois retornam sem desembarcar, reduzindo a sua módica farra à simples mirada reconfortante com que percorrem a Cidade Velha de suas nostalgias; a das mães jovens que nunca saem de noite e entram no cinema, com cara de culpadas, por volta das três e meia da tarde; a das amas que difamam as suas patroas enquanto as moscas devoram as crianças; a dos aposentados e ociosos vários, enfim, que crêem ganhar o céu jogando migalhas aos pombos da praça». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT