sábado, 6 de maio de 2017

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «Foi, afinal, mais e melhor cultivada por um autor que, embora bastardo de rei, se distancia claramente da corte régia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Para medir o significado histórico deste contraste, podemos comparar o que se passa em Portugal com o que acontece em Castela durante o século XIII. Por volta da década de 1280, época de redacção da nossa Primeira Crónica, Afonso X e os seus colaboradores tinham já acumulado centenas de páginas da sua Primera Crónica General, e entregavam-se já à tarefa da sua revisão crítica. Antes deles já Lucas Tuy e Rodrigo Ximénez Rada tinham escrito em latim as suas histórias da Hispânia, dando mostras, sobretudo o segundo, de uma impressionante maturidade na produção de um discurso historiográfico coerente, no relato dos feitos dos reis e na formulação de uma memória colectiva. Estes textos eram muito provavelmente conhecidos na corte portuguesa, uma vez que a rainha dona Beatriz era filha predilecta de Afonso X. Comparada com eles, a Primeira Crónica Portuguesa é de uma evidente rudeza. Se teve uma primeira redacção pelos anos 80, parece pouco mais do que o esboço de uma narrativa compósita e mal cerzida a que se juntam dados de vária ordem artificialmente inseridos no texto. Só a personagem de Afonso Henriques adquire alguma consistência, mas como um caudilho irrequieto e colérico, não tanto como chefe militar conquistador de vastos territórios ou como detentor de um poder acima de qualquer outro, e muito menos como fundador de uma nação.
Ora o primeiro cronista português escreve quase cem anos depois do cónego regrante de Coimbra autor dos Anais, ter produzido um texto curto, mas coerente, e de grande unidade, que apresenta uma visão carismática do primeiro rei de Portugal, fazendo dele o instrumento de Deus para destruição dos inimigos da fé. Ignora por completo o seu predecessor e, em vez do exaltar o rei e o conquistador do território retrata-o como um quase matricida e como um herói marcado pela maldição. Não se esforça por dar relevo às suas conquistas nem ao seu talento militar. A batalha de Ourique não lhe merece nenhuma atenção especial. Do reinado de Sancho I só lhe interessa o nome da mulher, dos numerosos filhos legítimos e ilegítimos e dos seus casamentos e lugares de sepultura. As guerras com Leão e os infortúnios do fim do século XII nada deixam na crónica. O mesmo se diga de Afonso II, transformado em conquistador de Alcácer do Sal, mas ignorado enquanto verdadeiro rei; ou melhor identificado como bom cristão no começo e na cima peor, o que quer dizer que a corte guardou a memória da contestação que sofreu por parte dos sectores senhoriais, mas não dos seus notáveis esforços de fortalecimento da coroa. Para voltar a encontrar alguma coisa que se pareça com uma verdadeira crónica dos reis de Portugal, é preciso chegar ao reinado de Sancho II, onde aparece um relato objectivo mas esquelético da intervenção papal para entregar o trono a seu irmão Afonso III, e assim afirmar que foi legítimo sucessor da coroa.
E a partir daqui? Se cronista havia na corte, porque nada registou do reinado de Afonso III nem sequer como apêndice? Se os elementos identificados por Filipe Moreira como acrescentos o foram de facto (e não apenas elementos autónomos que escribas não credenciados foram apontando ou juntando à Primeira Crónica), temos de concluir que Afonso III não se interessou pelo relato dos seus próprios feitos, como digno sucessor de seus pais e avós, nem sequer para registar a conquista definitiva do Algarve ou o seu casamento com a filha de Afonso X, ou a sua habilidade para evitar conflitos com o sogro. E que dizer de Dinis I, o rei poeta, o fundador da Universidade Portuguesa? Nada fez para que os vindouros soubessem que lhe deviam o traçado definitivo das fronteiras do reino, a dispendiosa edificação dos castelos com que guarneceu a fronteira, as triunfantes incursões militares em território leonês, o prestigiado papel como árbitro das desavenças e acordos entre os reis de Castela e de Aragão, a pacificação dos conflitos com a Santa Sé?
Não exageremos, pois, o valor da Primeira Crónica Portuguesa, como testemunho da ideologia régia. Pode ser que Afonso III, no princípio do seu reinado, tivesse encomendado um texto sobre a legitimidade do seu poder. O que ficou na Crónica não tem mais de 20 linhas e é apenas um relato descarnado. O rei pode ter admirado a monumentalidade da obra historiográfica de seu sogro. Mas não há nenhum indício de que ele ou, sequer, seu filho Dinis percebessem o interesse que, para si próprios e seus sucessores, teria a criação de uma narrativa memorialistica das acções régias que serviria de justificação intelectual da sua autoridade sobre o país que governavam, que postulasse a permanência do poder político e a sua ligação à colectividade nacional.
A menos que se venha a descobrir alguma crónica até agora inteiramente desconhecida, temos de procurar os vestígios da tradição ideológica da monarquia (na linha dos Anais de Santa Cruz) nas obras do conde Pedro, bastardo do rei Dinis I, não só através das informações que dá acerca dos reis portugueses depois de Afonso III, sobretudo acerca dos reis seu pai e seu meio-irmão, mas também nas alterações textuais aos materiais que usou na Crónica de 1344. Parecem-me especialmente significativos estes últimos. Assim acontece no diálogo de Afonso Henriques com o legado papal, quando o rei, na versão do conde de Barcelos, o mostra a despir-se para lhe mostrar as feridas que tinha recebido nas suas lutas com os mouros e que lhe davam o direito de desprezar a autoridade papal; ou na referência aos cinco reis mouros vencidos em Ourique e na explicação da forma do escudo real com os cinco escudetes em memória dos reis vencidos (ampliando assim um dado que se encontra em embrião na IV Crónica Breve mas não consta da Primeira Crónica Portuguesa).
Ora estes elementos têm, de facto, um forte sentido ideológico. O seu aparecimento tardio significa que a memória histórica acerca dos reis portugueses foi, até meados do século XIV, pouco consistente. Foi, afinal, mais e melhor cultivada por um autor que, embora bastardo de rei, se distancia claramente da corte régia, combate com todo o vigor a restrição das prerrogativas senhoriais e a centralização monárquica, e defende o princípio de que o rei tem o dever moral de compensar a participação das linhagens na conquista do território, e portanto na independência de Portugal. Interpreto estes factos como indícios de que a ideologia régia foi, inicialmente, cultivada apenas por alguns elementos cultos de um clero mais motivado pela luta contra o Islão do que pela construção de um poder monárquico forte e independente, e que o seu desenvolvimento tardio se deve à existência de uma vigorosa resistência senhorial que os reis Afonso II, Afonso III e Dinis souberam dominar mais por processos administrativos e burocráticos do que por processos intelectuais. Os letrados de que se serviram foram mais legistas e notários do que pensadores, filósofos, teólogos ou cronistas». In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Nº 6, Julho de 2009, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT