quarta-feira, 10 de maio de 2017

A Paixão segundo Constança H. Maria Teresa Horta. «Ouve o arrastar dos passos das doentes do lado de fora do quarto, ao longo do corredor»


jdact



«(…) «É aqui, que a febre da loucura aumenta Que o grito se contém mas nunca se contenta»

«Encontrara, entre os papéis da avó que o pai lhe passara, rascunhos de poemas e aquelas estranhas cartas, com letras diferentes, mas todas com a mesma assinatura: Constança H. Cartas como se tivessem sido escritas em épocas diferentes, mas para um mesmo homem: Henrique. Cartas curtas e amareladas, no seu papel quase amarrotado, numa tinta desbotada, como que a dissimular as emoções das palavras.
Guarda-as consigo, sem tentar sequer desvendar o mistério. Inquieta, lê-as vezes sem conta, procurando uma qualquer razão para a coincidência.
Mostra-as a Henrique, que lhe pergunta se foi ela que as escreveu; olha-o, curiosa, vendo-o um pouco pálido; fazendo por disfarçar o tremor das mãos onde as cartas da avó parecem querer esvoaçar. Tira-lhas e vai guardá-las, fechadas na gaveta da escrivaninha do quarto, para logo as voltar a tirar, relendo-as como se quisesse decorar o que lá está escrito. Dito.
Agora pensa nessas cartas e acha-as diferentes, com um sentido novo e maléfico. Como se com elas tivesse herdado um destino que vinha de trás: muito antes mesmo de ter nascido?
Mesmo quando não se lembra de mais nada rememora-as, mas cala-se sobre elas, porque as sente como um segredo guardado entre ela e a avó. Um elo. Não eram cartas só de amor: eram sobretudo de medo. De um temor avassalador pela paixão, ou por aquilo a que a paixão poderá obrigar. Uma insubordinação submersa? Sim, em todas elas, mesmo naquela que podia ser considerada cronologicamente a primeira e onde a submissão parece todo o tempo latente e mortal.
Ouve o arrastar dos passos das doentes do lado de fora do quarto, ao longo do corredor. Os gritos são logo abafados quando alguém os solta. Treme de frio sob os cobertores demasiado finos que não defendem do gelo que a madrugada assume durante o Inverno. Por isso sabe que é Inverno, pelo enregelamento que a faz soluçar baixinho. Desde que Henrique morreu que ninguém a vem visitar. Lê e relê os livros que ele lhe trouxera a seu pedido: Duras, Sylvia Plath, Clarice Lispector... Vidas femininas que se alinham ali, à sua beira, que vai desfolhando, quem sabe se pela loucura... Emma Santos, Florbela Espanca, Zelda Fitzgerald...» In Maria Teresa Horta, A Paixão segundo Constança H., 1994, Bertrand Editora, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-252-242-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT