quarta-feira, 3 de maio de 2017

A Intrusa. Júlia Lopes Almeida. «Eu cruzei as minhas armas, nesta porfia, com os maiores talentos da Câmara e feri-os a todos sem piedade»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Que temporal! E um friozinho! Conhecem vocês nada mais gostoso do que ouvir-se o barulho da chuva quando se está agasalhado? Eu estou me regalando... Sempre o mesmo egoísta! Como estás em tua casa..., mas..., desalmado, lembra-te de nós! São quase horas de me ir recolhendo aos meus penates. E ali o padre Assunção, caso não fique pelo caminho, terá também que marchar um bom pedaço a pé. Ao Teles, esse o bonde leva-o até o quarto de dormir! Nasceu empelicado. Por essa feia noite de chuva, conversavam em casa do advogado Argemiro Cláudio, no Cosme Velho, o seu grande amigo padre Assunção, o deputado Armindo Teles e o Adolfo Caldas, homem de quarenta anos, sem profissão determinada, mas muito bem aceito nas rodas políticas e literárias, que frequentava assiduamente. Tinham jantado tarde, fumavam agora na biblioteca de Argemiro, sentados à mesa do póquer.
Menos por virtude que por cansaço, padre Assunção não quisera tomar parte no jogo e andava pela sala sacudindo o pano da batina a cada impulso das suas largas passadas. Era alto, magro, anguloso, de uma cor pálida; e nas suas feições acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal expressão de candura, que Adolfo Caldas costumava dizer: o riso do Assunção cheira a rosas brancas. O Argemiro, advogado, conforme rezavam os diários do Rio, dos mais distintos do nosso foro, jogava por jogar, sem vivo interesse, só para pretexto de chamar os amigos à sua casa de viúvo e de lhe dar uma palpitação de alma que lhe ia faltando...
Ah! Uma casa sem mulher, afirmava ele, é um túmulo com janelas: toda a vida está lá fora... E lembrar-se que aquilo havia de ser para sempre! O Argemiro Cláudio Menezes, descendente directo dos Iglésias Menezes, nobres de Portugal, cujo solar brasonado existe ainda, bem que arruinado, naquele país, em terras limítrofes da Espanha, à beira de um rio espelhento e de pinheirais perdidos, era um homem ainda moço, robusto, de carnes sólidas e uns olhos negros, em que talvez a raça árabe transparecesse ainda, adoçada pelo cruzamento com a lusitana. A barba preta talhada rente ao rosto pálido, tinha já um ou outro fio prateado, e o cabelo muito curto desenhava-lhe a cabeça redonda e forte. Tinha as mãos pequenas, a atitude preguiçosa, em contradição à energia do tipo. Viúvo há sete anos de uma formosa senhora, cujo retrato aparecia em todos os cantos da casa, ele protestara não tornar a casar-se.
A mulher, filha dos barões do Cerro Alegre, levara-lhe a melhor porção da sua vida. Do primeiro ano do seu casamento, que durara cinco, existia uma filha, Maria da Glória. Vivia esta menina com os avós maternos, num chalé dos subúrbios, e andava agora pelos seus onze anos e os rudimentos de português e de música. Tanto como o pai e os avós, por ela se interessava o padrinho, padre Assunção. Sem interromper a partida, o deputado Armindo Teles gabou-se: foi hoje um dos dias mais belos da minha vida; não preciso de mais nada para julgar-me compensado dos enormes sacrifícios que a deputação me tem custado..., rios de dinheiro, noites de insónia, descomposturas de outros partidos..., de tudo colhi hoje o prémio. Imaginem vocês que tive de lutar renhidamente com o próprio governo, molestar colegas, ir de encontro mesmo a princípios que prezo de gratidão pessoal e de conveniência própria, e que, arrostando tudo, como um soldado na guerra, consegui a minha vitória.
Imaginem se não devo estar satisfeito! Uma vitória política, já o disse Chartrier, embriaga melhor que o mais velho licor. Chartrier?..., perguntou com curiosidade o padre Assunção. Armindo Teles pareceu não ouvi-lo e continuou: infelizmente temos agora na Câmara poucos talentos de combate. Carecemos de mais vivacidade... A indiferença de uns e a má vontade de muitos enfraquecem os golpes de um ou outro mais entusiasta... Eu cruzei as minhas armas, nesta porfia, com os maiores talentos da Câmara e feri-os a todos sem piedade. Criei inimigos; pouco importa, mas triunfei!
Adolfo Caldas, levantando os olhos das cartas em leque na mão gorducha, indagou, sorrindo: por que feito ilustre glorificaste a pátria? Pelo reconhecimento do Simão Cunha, o meu colega Simão Cunha, que a Câmara em peso guerreava! Sob o bigode de Argemiro passou a sombra de um sorriso. Adolfo Caldas impregnou de cândida ingenuidade os seus maliciosos olhos castanhos e disse apenas, como a procurar: Cunha?...» In Júlia Lopes Almeida, A Intrusa, 1905, Projecto Livro Livre, 219, 2014.

Cortesia de PLLivre/JDACT