terça-feira, 7 de novembro de 2023

Dispara, eu já estou morto. Julia Navarro. «Desde que a fora buscar ao aeroporto há quatro dias, tinha reparado na sua tensão, no seu desconforto. Ficava incomodado com a distância que ela colocava entre eles ao insistir que lhe chamasse senhora Miller»

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Jerusalém, época actual

«Há momentos na vida em que a única forma de nos salvarmos a nós próprios é matando ou morrendo. Aquela frase de Mohamed Ziad atormentava-a desde o momento em que a tinha ouvido dos lábios do seu filho Wadi Ziad. Não conseguia deixar de pensar naquelas palavras enquanto conduzia sob um sol implacável que dourava as pedras do caminho. A mesma cor dourada das casas que se amontoavam na nova cidade de Jerusalém, construídas com essas pedras enganosamente suaves, mas duras como as rochas das pedreiras de onde tinham sido arrancadas. Conduzia devagar deixando que o seu olhar vagueasse pelo horizonte onde as montanhas da Judeia lhe pareciam próximas.

Sim, ia devagar embora tivesse pressa; no entanto, precisava de saborear aqueles instantes de silêncio para evitar que as emoções a dominassem. Duas horas antes não sabia que ia dar início ao caminho que a levaria para o seu destino. Não é que não estivesse preparada. Estava. Mas ela, que gostava de planear até ao último detalhe da sua vida, tinha ficado surpreendida com a facilidade com que Joël tinha conseguido o encontro. Bastara uma dúzia de palavras. Já está, vai receber-te ao meio-dia. Tão cedo? São dez horas, tens tempo suficiente, não é muito longe. Eu indico-te no mapa, não é complicado chegar lá. Conheces bem o sítio? Sim, e também os conheço a eles. A última vez que lá estive foi há três semanas com o pessoal da Acção pela Paz.

Não sei como é que confiam em ti. E porque é que não haviam de confiar? Sou francês, tenho bons contactos, e as almas inocentes das ONG precisam de quem as oriente nas confusões burocráticas de Israel, alguém que lhes trate das autorizações para atravessar para Gaza e para a Cisjordânia, que consiga uma entrevista com algum ministro perante o qual protestar pelas condições em que os palestinianos vivem; proporciono-lhes camiões a bom preço para transferirem a ajuda humanitária de um lugar para outro... A minha organização faz um bom trabalho. Tu podes confirmá-lo. Sim, vives dos bons sentimentos do resto do mundo. Vivo de prestar um serviço a quem vive da má consciência dos outros.

Não te queixes, nem sequer há um mês que entraram em contacto connosco, e durante esse tempo consegui-te encontros com dois ministros, com parlamentares de todos os grupos, com o secretário da Histadrut, acesso facilitado para entrar nos Territórios, conseguiste entrevistar muitos palestinianos... Estás há quatro dias aqui e já cumpriste metade do programa que tinhas previsto. Joël olhou para a mulher, aborrecido. Não gostava dela. Desde que a fora buscar ao aeroporto há quatro dias, tinha reparado na sua tensão, no seu desconforto. Ficava incomodado com a distância que ela colocava entre eles ao insistir que lhe chamasse senhora Miller.

Ela fitou-o. Tinha razão. Tinha cumprido. Outras ONG utilizavam os seus serviços. Não havia nada que Joël não conseguisse desde esse escritório com vista para a Cidade Velha de Jerusalém ao longe. Com ele trabalhavam a sua mulher, que era israelita, e mais quatro jovens. Dirigia uma empresa de serviços muito apreciada pelas ONG. Vou dizer-te uma coisa sobre esse homem: é uma lenda, disse Joël. Teria preferido falar com o filho dele, foi isso que te pedi. Mas ele foi para os Estados Unidos a convite da Universidade de Columbia para participar num seminário e, quando regressar, tu já não estarás aqui. Não tens o filho, mas tens o pai; acredita em mim quando te digo que ficas a ganhar com a mudança. É um velho formidável. Tem uma história... Conhece-lo assim tão bem? Às vezes os tipos do ministério enviam-lhe pessoas como tu. É uma pomba, o contrário do filho. É precisamente por isso que me interessa falar com o Aaron Zucker, porque é um dos principais líderes da política de assentamentos. Sim, mas o pai é mais interessante, insistiu Joël.

Ficaram em silêncio para evitar uma dessas absurdas discussões em que se engalfinhavam. Não se tinham dado bem. Ele achava-a exigente; ela só via o seu cinismo. E agora já estava a caminho. Cada vez se sentia mais tensa. Tinha acendido um cigarro e aspirava o fumo com prazer enquanto fixava o olhar naquela terra ondulada onde dos dois lados da estrada pareciam trepar alguns edifícios modernos e funcionais. Não havia cabras, pensou deixando-se levar pela imagem bíblica, mas porque é que haveria de haver? Não restava sítio para as cabras junto àqueles enormes blocos de aço e vidro que eram a insígnia da prosperidade do moderno Israel». In Julia Navarro, Dispara, eu já estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.

Cortesia de EBertrand/JDACT

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