quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Isabel de Castela. Giles Tremlett. «Ninguém jamais imaginara que o Último Imperador do Mundo seria uma mulher, mas Isabel, em aliança com seu marido, o rei Fernando de Aragão, fez mais do que qualquer outro monarca de sua época para reverter o declínio da cristandade»

jdact e cortesia de wikipedia

A primeira grande rainha da Europa

«Todas enfrentaram os desafios de ser uma soberana em um mundo predominantemente dominado por homens e todas tiveram reinados longos e transformadores, deixando legados que seriam sentidos por séculos. Somente Isabel fez isso liderando um país que emergia do tumultuado fim da Idade Média, utilizando as ideias e os instrumentos do começo da Renascença para começar a transformar uma nação indisciplinada e rebelde em uma potência europeia com uma monarquia ousada e ambiciosa no centro. Ela foi, em outras palavras, a primeira nesse ainda pequeno clube de grandes rainhas europeias. Para alguns, ela continua a ser a maior. Não houve na história nenhuma mulher que tivesse suplantado suas realizações, afirmou o historiador da Espanha Hugh Thomas. Este autor concorda, pelo menos no que diz respeito às mulheres monarcas e seu impacto no mundo.

As realizações de Isabel não são apenas notáveis por causa de seu sexo, mas especialmente por ele. Isabel surgiu depois de mais de um século de crise na Europa. Em 1346, uma tropa de tártaros, durante um cerco, havia lançado os corpos cobertos de manchas, devastados pela praga, de vítimas da Peste Negra em uma guarnição militar genovesa na Crimeia. Os genoveses foram forçados a fugir em navios que levaram a doença para a Europa, ou assim alegou o genovês Gabriele de’ Mussi, depois de ver a praga devastar sua cidade natal, Piacenza. Na verdade, a Peste Negra tomou muitas outras rotas dentro da Europa, onde ceifou a vida de um terço da população. O facto acelerou a morte do sistema feudal na maior parte da Europa Ocidental, privando-a de mão de obra e provocando desde revoltas de camponeses ao abandono de terras produtivas. Então, em 1453, o belo e arrojado sultão otomano de vinte anos Mehmet II ordenou que seus navios fossem levados por terra para dentro do estuário Corno de Ouro, isolando a capital da cristandade oriental, Constantinopla. Esta logo caiu em suas mãos.

Exércitos muçulmanos, então, completaram sua ocupação da Grécia e de grande parte dos Bálcãs, assinalando mais um episódio sombrio na história da Europa cristã ocidental. A explicação para tudo isso, em um mundo dominado pela religião e pela superstição, era simples e amplamente compartilhada. Deus estava furioso. Sua ira se abatera sobre um mundo pecaminoso e, em alguns lugares, acreditava-se que Deus havia fechado as portas do paraíso. Os cristãos há muito sonhavam com um líder mítico e redentor, o Último Imperador do Mundo, ou o Rei Leão, que recuperaria Jerusalém e converteria o mundo à verdadeira fé.

Agora, com o islamismo em ascensão e eles próprios diante de um declínio aparentemente irreversível, precisavam de tal líder ainda com maior urgência. Os castelhanos desejavam que o grande salvador da cristandade fosse um de seus próprios monarcas, porém reis fracos trouxeram constante decepção. Os estrangeiros viam uma Espanha permanentemente imersa em disputas, como um país envolto em uma escuridão natural, e Castela continuou sendo uma sociedade volátil e instável. Uma categoria social inteiramente nova, a dos cristãos-novos ou conversos, ainda estava sendo assimilada entre frequentes explosões de violência. Os conversos eram os filhos e netos dos que um dia constituíram a maior comunidade de judeus do mundo, a maioria dos quais parecia ter sido convertida à força oitenta anos antes.

Nas cidades, uma burguesia crescente de mercadores de lã, banqueiros, comerciantes e oligarcas locais lutava para se impor. Em outros lugares, muitos buscavam alcançar ou manter os privilégios de classe, em geral, personificados pela ampla, ainda que empobrecida, categoria de hidalgos, cujo nome derivava do termo hijos de algo, ou filhos de algo. Entretanto, o verdadeiro poder ainda permanecia nas vastas e isentas de impostos propriedades dos Grandes, ordens militares e Igreja, que eram também a maior ameaça à autoridade real.

No entanto, em um continente dividido em dezenas de reinos, cidades-Estados, principados e ducados belicosos, Castela era um dos poucos países com potencial para produzir um líder que pudesse reverter a debilitada sorte da cristandade ocidental. Grandes rebanhos de carneiros da raça merino, resistentes e de lã fina de excelente qualidade, cerca de cinco milhões de cabeças, haviam transformado Castela no que um historiador chamou de a Austrália da Idade Média, com lã sendo enviada para sofisticados centros têxteis do Norte da Europa. Em Roma, a capital espiritual da Europa, o papa tinha absoluta consciência da importância dessa riqueza, já que a Ibéria era responsável por um terço da renda do papado.

Ninguém jamais imaginara que o Último Imperador do Mundo seria uma mulher, mas Isabel, em aliança com seu marido, o rei Fernando de Aragão, fez mais do que qualquer outro monarca de sua época para reverter o declínio da cristandade. Apesar disso, Isabel permaneceu admirada por quase toda a Espanha. Há muitas razões para isso. Uma foi o uso que ela fez da violência. Esta é uma arma legítima e necessária para o exercício do poder, mas geralmente é considerada perturbadora quando usada por uma rainha, como se aquelas que usurpam o papel masculino de liderança fossem guiadas por forças malignas e obscuras que anulam uma feminilidade supostamente natural e amável. Isabel não tinha nenhum escrúpulo em empregar a violência, sentindo a mão de Deus por trás de cada golpe desfechado em seu nome». In Giles Tremlett, Isabel de Castela, Editora Rocco, 2018, ISBN 978-853-253-099-8.

 Cortesia de ERocco/JDACT

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