quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Mil Noites de Paixão. Madeline Hunter. «O prazer que se tira de toda a mulher é muito parecido. O mesmo não se pode dizer da comida. Ela voltou a mexer-se. As suas pálpebras ergueram-se suavemente. Ficou alerta à medida que compreendia a posição…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Pegou no punhal. Olhou com pena para o belo homem ali deitado como uma vítima sacrificial sob o efeito de drogas. Pareceu-lhe indefeso, assim de repente, a dormir como uma criança e, subitamente, ela imaginou-o como tal, fresco e inocente. Sentiu um aperto no coração, que se revoltava contra o rumo que ela havia traçado para si própria.  Ergueu o punhal, agarrando-o com ambas as mãos, a ponta letal apontada ao coração dele. Os braços dela tremiam, o corpo dela tremia, a própria lâmina oscilava no ar. Ela tentou novamente encontrar coragem no medo que sentia pelos amigos. Quando isto não resultou, virou-se para o medo que sentia por si própria. Os olhares de suspeita e as acusações. A carta do bispo. Os livros e plantas e poções. Deixara de ver o punhal, mas este surgiu, de repente, à sua frente, muito real, muito afiado. Ela olhou para os nós dos dedos cerrados à volta do cabo, depois para a ponta, e depois para o peito sólido. Por fim, olhou de relance para o belo rosto.

Ele devolveu-lhe o olhar. Olhos negros reluziam perigosos por baixo de copiosas pestanas. Sentiu-se tomada de pânico. Sabendo que agora seria matar ou ser morta, ergueu-se nos joelhos e fez o punhal seguir o seu curso. Uns braços fortes ergueram-se de rompante e uns dedos de ferro agarraram-lhe os pulsos. Ele atirou-a para o lado e ela caiu. Na luta que se seguiu, a lâmina tocou-lhe e um fio vermelho escorreu pelo braço dele. Ela deu por si deitada de costas e imobilizada. O rosto que via à sua frente estava endurecido pela fúria. Achastes mesmo que eu seria um Holofernes para a vossa Judite?, rosnou ele. Era esse o plano, não era? Como nos evangelhos bíblicos. Matais o general e o exército sem líder dispersa em confusão.

Apócrifos, corrigiu ela absurdamente, com uma voz que parecia vir de muito longe. Não é da Bíblia convencional. É dos evangelhos apócrifos. Que me importa se Deus deu a história a Moisés em pessoa, sua cabra. Ele agarrou-lhe no cabelo e pôs-se em pé, obrigando-a a colocar-se de joelhos. Arrastou-a até ao mastro central e atou-a com os braços esticados acima da cabeça. Foi até às peles. Ela tinha a certeza de que ele ia buscar o punhal para lhe cortar o pescoço. O seu coração batia-lhe no peito com uma pulsação de chumbo. Ele regressou com a garrafa de vidro e encostou-a aos lábios dela. Bebei, ordenou.

Ela gemeu e mexeu-se. Ian olhou-a do banco onde estava sentado a comer uma das empadas. Ela estava deitada na enxerga, de braços e pernas afastados e amarrados aos cantos. Ele tinha ponderado tirar-lhe a roupa mas acabara por decidir que poderia ser de mais. Ele queria-a assustada e vulnerável, não paralisada de terror. A luta deles rasgara-lhe o vestido, quase expondo um pequeno e mimoso seio. A saia subira-lhe pelas pernas bem torneadas. Ela tinha um corpo muito bonito, mesmo que algo magro de mais. Pequeno e curvilíneo e compacto e bem-feito como o de Elizabeth era, só que mais jovem.

Quando a vira pela primeira vez, em pé à luz ténue, formidável e determinada, com aquele cabelo claro e liso a dar-lhe pelas ancas, pensara por um instante que ela era Elizabeth. Mas o rosto, ainda que bastante belo, nada tinha da perfeição precisa de Elizabeth, e era mais caloroso e expressivo. E o cabelo não era branco como o de Elizabeth, mas de um louro-claro raiado de madeixas prateadas, e a sua pele possuía um agradável brilho rosado. Elizabeth fora branca como a neve. Esta mulher parecia o primeiro sol da madrugada.  Vinte e tais, foi o seu palpite. Adorável e corajosa. Pena ter de a destruir.

O seu escudeiro, John, transpôs a entrada da tenda, trazendo consigo um prato de guisado. O jovem tinha tomado o seu tempo para servir a ceia, trazendo uma coisa de cada vez, o que lhe proporcionava uma desculpa para olhar cobiçosamente para a mulher. Os seus olhos voluptuosos examinaram as pernas desnudadas. Era melhor clarificar as coisas agora. – Mantém as calças bem apertadas, rapaz. Ela não é para ti. John corou e pousou o guisado. Ian recebeu a pasta sensaborona com uma careta. Felizmente, tinha enchido a barriga com as deliciosas empadas de carne de Melissa. Pegando na última, atirou-a ao escudeiro quando ele saiu. Uma consolação.

O prazer que se tira de toda a mulher é muito parecido. O mesmo não se pode dizer da comida. Ela voltou a mexer-se. As suas pálpebras ergueram-se suavemente. Ficou alerta à medida que compreendia a posição em que estava. Deu puxões às cordas que a amarravam, e o movimento fê-la gemer novamente. Então, que tal?, perguntou ele. Nunca ouvi falar de uma poção para dormir que depois não nos desfizesse a cabeça.

O olhar encoberto dela deslizou para o sítio onde ele estava sentado. Por um momento, antes de se recompor, mostrou uma centelha de pânico. Óptimo. Sorte a vossa que não era veneno, acrescentou ele. Eu não tinha uma receita de veneno. Ele resistiu à vontade de rir. Quanta vivacidade. – Que pena. Ela conseguiu encolher um pouco os ombros. Já que é óbvio que nunca bebestes uma gota, não teria feito diferença nenhuma. Ela voltou a passar os olhos pelo seu corpo vulnerável. O que ides fazer? Tentou parecer corajosa e imperturbável. Ele sentiu alguma pena dela. Tenho estado a pensar nisso durante estas últimas horas. Estava a postos para vos enforcar quando vós acordastes. Enforcar-me! Sim. Por assassínio. Mas eu não… Tentastes. Não foi bem assim. Perdi a coragem. Tenho um corte no braço que diz que sim. Só porque me atacastes. Se tivésseis ficado a dormir como era devido…

Agora estaria morto. Não vos ponhais agora com lamechices a fazer-vos de inocente, Melissa. O vosso plano tinha arrojo e coragem, e eu respeito isso. Mas falhastes, o que faz com que a vossa vida me pertença e eu possa dispor dela. Pensei num enforcamento, mas o meu escudeiro convenceu-me que seria um desperdício. Portanto, engendrei um plano para a vossa redenção. Ele aproximou-se e sentou-se no catre, ao lado dela. Como fizestes notar, este cerco tem sido longo e abrasador. Encontram-se aqui muitos homens entediados, e as meretrizes do acampamento… bem, elas não são a mesma coisa do que ter uma cortesã. Ela arregalou os olhos. Estais a dizer que ides dar-me ao vosso exército? Que esperais que eu…» In Madeline Hunter, Mil Noites de Paixão, 2002, Edições ASA, 2012, ISBN 978-989-231-672-7.

Cortesia de EASA/JDACT

JDACT, Madeline Hunter, Literatura, Idade Média,