terça-feira, 7 de novembro de 2023

Dispara, eu já estou morto. Julia Navarro. «Aquele homem desconcertava-a. Não lhe queria dizer o seu nome, claro que não pensava tratá-lo pelo dele, mas se ele decidia dar por encerrada a conversa, então... então teria desperdiçado a melhor oportunidade…»

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Jerusalém, época actual

«Uns minutos mais tarde, saiu da via rápida e dirigiu-se a uma estrada que conduzia a um grupo de casas situadas sobre uma colina. Estacionou o carro em frente a um edifício de pedra de três andares, idêntico a outros que se erguiam sobre um terreno rochoso; dali, nos dias claros, conseguia-se ver as muralhas da Cidade Velha.

Apagou o cigarro no cinzeiro do carro e respirou fundo. Aquele lugar parecia uma urbanização burguesa, como tantas outras. Casas de vários andares, rodeadas de jardins ocupados por baloiços e escorregas para as crianças e carros alinhados junto a passeios impolutos. Respirava-se tranquilidade, segurança. Não lhe custava imaginar como eram as famílias que agora viviam dentro daquelas casas, embora soubesse como tinha sido esse lugar há décadas. Tinham-lho contado alguns velhos palestinianos, com o olhar perdido nas lembranças daqueles dias nos quais eram eles que viviam nesse pedaço de terra, porque ainda não tinham chegado os outros, os judeus.

Subiu as escadas. Mal tocou à campainha, a porta abriu-se. Uma mulher jovem, que nem sequer teria trinta anos, recebeu-a sorridente. Vestia-se informalmente, com calças de ganga, uma t-shirt larga e ténis. O seu aspecto era igual ao de tantas outras jovens, mas ter-se-ia destacado entre milhares pelo seu franco sorriso e o seu olhar carregado de bondade. Entre, estávamos à sua espera. É a senhora Miller, não é? Sim. Eu sou a Hanna, a filha do Aaron Zucker. Lamento que o meu pai esteja a viajar, mas, como insistiram tanto do ministério, o meu avô vai recebê-la. Da minúscula entrada passaram para uma sala espaçosa e luminosa. Sente-se, vou avisar o meu avô. Não é preciso, estou aqui. Sou o Ezequiel Zucker, disse uma voz procedente do interior da casa. Um momento depois apareceu um homem. A senhora Miller cravou o olhar nele. Era alto, tinha o cabelo grisalho e os olhos de cor cinzenta; apesar da idade, parecia ágil.

Apertou-lhe a mão com força e convidou-a a sentar-se. Então a senhora queria ver o meu filho... Na verdade queria conhecê-los aos dois, embora sobretudo ao seu filho, já que é um dos principais impulsionadores da política de assentamentos... Sim, e é tão convincente que o ministério lhe envia os visitantes mais críticos para ele lhes explicar a política de assentamentos. Bem, estou à sua disposição, senhora Miller.

Avô, interrompeu Hanna,se não te importas, vou andando. Tenho uma reunião na universidade. O Jonas também está prestes a sair. Não te preocupes, eu desenrasco-me sozinho. De quanto tempo precisa?, perguntou Hanna à senhora Miller. Tentarei não o cansar... Uma hora, talvez um pouco mais...,respondeu a mulher. Não há pressa, disse o ancião, na minha idade o tempo não conta. Ficaram sozinhos e ele reparou na sua tensão. Ofereceu-lhe chá, mas ela recusou. Então, a senhora trabalha para uma dessas ONG que recebem subsídios da União Europeia. Trabalho para a Refugiados, uma organização que estuda no terreno os problemas que as populações deslocadas sofrem devido a conflitos bélicos, catástrofes naturais... Tentamos avaliar o estado dos deslocados, e se as causas que provocaram o conflito estão em vias de solução, ou quanto pode durar a sua situação, e se julgarmos conveniente instamos os organismos internacionais a adoptarem medidas para atenuar o sofrimento dos deslocados. Os nossos estudos são rigorosos e por isso recebemos ajuda de instituições comunitárias.

Sim, conheço os relatórios da Refugiados sobre Israel. Sempre críticos. Não se trata de opiniões, mas sim de realidades, e a realidade é que, desde 1948, milhares de palestinianos tiveram de abandonar os seus lares, viram-se despojados das suas casas, das suas terras. O nosso trabalho é avaliar a política de assentamentos que aumenta o número de deslocados. Aqui onde nos encontramos, nesta colina, houve uma aldeia palestiniana da qual não resta nada. Sabe que destino tiveram os habitantes dessa aldeia? Onde estão agora? Como sobrevivem? Poderão algum dia recuperar o lugar onde nasceram? O que é que o senhor sabe sobre o seu sofrimento?

Arrependeu-se imediatamente das suas últimas palavras. Aquele não era o caminho. Não podia mostrar tão abertamente os seus sentimentos. Tinha de tentar manter uma atitude mais neutra. Nada de comprazimento, mas de aversão também não. Mordeu o lábio inferior enquanto esperava pela resposta do homem. Como se chama?, perguntou ele. Desculpe? Pergunto-lhe o seu nome. É muito impessoal tratá-la por senhora Miller. A senhora pode tratar-me por Ezequiel. Bem, não sei se é o mais correcto... Tentamos não confraternizar quando estamos a trabalhar. A minha intenção não é confraternizar consigo, mas sim que nos tratemos pelos nossos respectivos nomes. Quer dizer... não estamos no Palácio de Buckingham! A senhora está na minha casa, é minha convidada e peço-lhe que me chame Ezequiel.

Aquele homem desconcertava-a. Não lhe queria dizer o seu nome, claro que não pensava tratá-lo pelo dele, mas se ele decidia dar por encerrada a conversa, então... então teria desperdiçado a melhor oportunidade que alguma vez ia ter para levar a cabo aquilo que tanto a atormentava. Marian. Marian? Não me diga... É um nome comum. Não se desculpe por se chamar Marian. Sentiu raiva. Ele tinha razão, estava a desculpar-se pelo seu nome, e não tinha motivos para isso». In Julia Navarro, Dispara, eu já estou morto, Editora Bertrand, 2014, ISBN 978-972-252-905-1.

Cortesia de EBertrand/JDACT

JDACT, Julia Navarro, Literatura, Médio Oriente, Conhecimento,