domingo, 1 de agosto de 2010

António Feio: Não escolhemos o assunto (...) o segredo das obras-primas está aí, na concordância do assunto e do temperamento da arte

(1954-2010)
Maputo, ex-Lourenço Marques
Cortesia de portalclassicos
António Jorge Peres Feio foi um actor e encenador português. Aos onze anos estreou-se no teatro com a peça de Miguel Torga, «O Mar», no Teatro Experimental de Cascais. Passou pelos teatros São Luiz, ABC, Aberto, Nacional D. Maria II, entre outros.
Estrou-se a encenar com o espectáculo «Pequeno Rebanho Não Desesperes» de Christian Giudicelli, na Casa da Comédia.

Deixai que a Vida sobre Vós Repouse
Deixai que a vida sobre vós repouse
qual como só de vós é consentida
enquanto em vós o que não sois não ouse

erguê-la ao nada a que regressa a vida.
Que única seja, e uma vez mais aquela
que nunca veio e nunca foi perdida.

Deixai-a ser a que se não revela
senão no ardor de não supor iguais
seus olhos de pensá-la outra mais bela.

Deixai-a ser a que não volta mais,
a ansiosa, inadiável, insegura,
a que se esquece dos sinais fatais,
a que é do tempo a ideada formosura,
a que se encontra se se não procura.
Jorge de Sena, in «As Evidências»

Cantar do Amigo Perfeito
Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?
Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?
Também aqui, sorrindo em branda mágoa,
desfiámos, sem palavras castamente cruas,
não já sequer os íntimos segredos
que o próprio amor, porque ama, não confessa,
nem a vaidade humana dos sentidos, mas
subtis fraquezas vis, ingénuas e secretas
- em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó amigo?
(...)
Partiste e foi contigo a juventude.
Ficou o silêncio adulto, pensativo e pródigo,
e o terror de não ser minha estátua jacente
sobre o túmulo frio onde as cinzas da infância
desmentem - palpitar de traiçoeira fénix! -
que só do amor ou só da terra haja saudade.
Em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
tu sabes que a levaste, ó meu amigo?
Jorge de Sena, in «Pedra Filosofal»


Com José Pedro Gomes, iniciou uma dupla inesquecível em 1993, com «Inox-Take 5». As «Conversas da Treta» foram talvez o rosto mais visível da carreira de António Feio, que também passou pelo cinema e pela rádio.

Cortesia do jornaldascaldas
«O objectivo profundo do artista é dar mais do que aquilo que tem». In Paul Valéry.
Cortesia de O Citador/JDACT