sexta-feira, 18 de março de 2011

Painel de São Vicente de Fora. Nuno Gonçalves: Parte III. Painel do Arcebispo (2). Uma obra-prima da pintura portuguesa do século XV, pintada a óleo entre 1470 e 1480

Cortesia de paineis

Parte 2.
Painel do Arcebispo

Cortesia de paineis 

Um painel de igualdade
«Quando, para designar o painel «do Arcebispo», se escolhe uma das figuras do plano mais recuado, integrada no background genericamente composto por elementos do clero, não se faz mais que sublinhar a ausência de individualização das cinco figuras principais que rodeiam a figura central. Parece ter havido uma intenção de «igualizar» os cinco de forma subtil, como resulta de uma comparação com o painel dos Cavaleiros, onde cada figura possui uma personalidade própria e assertiva, veste de modo distinto das restantes, e ostenta armas individualizadas providas de ricos ornamentos.
Em contraste, os cinco do painel do Arcebispo, e em especial os dois dianteiros, apresentam fisionomias e expressões pouco assertivas, vestem de forma semelhante, a ponto de se poder dizer dos mesmos dois mais avançados que estão uniformizados dos pés à cabeça, e as suas armas são idênticas e de aspecto singelo (compare-se a espada desprovida de ornamentos do primeiro plano deste painel com as do painel dos Cavaleiros, ou as cotas de malha simples e idênticas envergadas pelas cinco figuras, quatro delas por baixo de couraças ou brigandinas iguais duas a duas, com a rica e ornamentada «cota de malha» da figura de vermelho no painel dos Cavaleiros).

Cortesia de paineis
Uma descrição das figuras avançadas deste painel poderia ser a seguinte:
  • quatro homens mais velhos e um jovem mostram-se vestidos de forma muito semelhante, com o mesmo tipo de cota de malha (note-se o rebordo dourado inferior comum a todas as cinco), armados de lanças idênticas (três lanças iguais até ao último pormenor visível) e de espadas de aspecto modesto, uma única completamente visível, duas quase ocultas pertencentes ao jovem e à figura recuada da direita;
  • Embora o jovem esteja provido de um estranho barrete que o distingue dos outros, os restantes quase são idênticos dois a dois;
  • Duas couraças muito similares atrás, dois irmãos gémeos, no vestuário, à frente, com mangas, calças e golas vermelhas, brigandinas verdes, e barretes roxos com pequenos ornamentos dourados.
A cor vermelha das golas do primeiro plano estende-se ao jovem e à figura por trás de si, cuja manga mostrada quase subliminarmente no extremo limite do painel é também vermelha. A outra figura recuada, no entanto, apresenta uma gola castanha e o extremo da sua manga não é visível dado que se encontra oculto por uma peça de armadura que cobre a pequena porção de antebraço mostrada. Através desta ambiguidade, a habitual irresolução parece surgir uma vez mais, para que o ponto de vista ingénuo possa disputar o engenho da igualização prevalecente. Observe-se novamente o método convoluto mas eficaz: o pequeno fragmento de manga perto do limite esquerdo do painel indica-nos primeiro, subtil mas categoricamente, que a figura recuada desse lado ostenta a cor vermelha, tal como as avançadas; as mangas do jovem à sua frente são compostas pela própria cota de malha; e o pequeno fragmento de antebraço da outra figura recuada introduz, através de uma «providencial» peça metálica que cobre a manga, a indefinição que não permite confirmar nem rejeitar a regra sugerida «as mangas são vermelhas».

Para melhor captarmos a lógica de charada, reflectir um pouco mais sobre a forma como o pintor:
  • identifica por completo as duas figuras mais avançadas uma com a outra (troncos verdes, membros vermelhos, barretes roxos com pequenos dourados),
  • mostra seguidamente pequenas excepções nas restantes para impedir generalizações absolutas (uma gola castanha para quatro vermelhas, por exemplo),
  • consegue o tour de force de esconder quase completamente as partes de indumentária de nada menos que três figuras visíveis que permitiriam conclusões definitivas (ou seja, da figura recuada da esquerda, do jovem, e da figura cujo antebraço está coberto pela peça de armadura metálica: sem cores de mangas visíveis nas duas últimas; e com as calças de todas as três visíveis, mas na sombra!).
A explicação através das «simples coincidências» começa a identificar-se com o milagre:
  • se o pintor não reparou no que andou a fazer, alguém reparou por ele e o conduziu.
O problema suscitado pela aparente igualização de figuras principais consiste portanto em conciliar este dado, e a singeleza das couraças e armas exibidas, com a necessidade de lhes atribuir o estatuto de importância que o seu posicionamento no políptico implica, conduzindo, aliás, a uma proliferação de identificações de reis e grandes notáveis neste painel pelas várias teses que o procuram explicar de formas pouco satisfatórias.
Mas as duas figuras do primeiro plano chegam para mostrar a que ponto as interpretações literalistas podem atingir extremos de imaginação. O que se pode garantir é que não estamos na antiga Esparta e nem em Portugal, nem em qualquer outro país europeu, se usavam os reis aos pares...


Cortesia de paineis
É verdade que uma das duas figuras gémeas tem, sobre os ombros e o pescoço, três pequenas laçadas de fio dourado aparentemente simbólicas, por pouco práticas e sem função visível, que a distinguem de todas as outras, como se desse modo lhe fosse conferida uma posição destacada no seio da igualização, confirmando o misterioso gesto da inefável figura central. Mas se não estamos perante uma charada, por que razão teria o pintor evitado as habituais e ricas vestes de um presumível rei, príncipe ou regente, com os seus tecidos de brocados ou peças militares repletas de dourados, incluindo as suas espadas ou lanças cerimoniais?
Um rei uniformizado, com brigandina e chuço de soldado, igualzinho a outros três, acompanhado de um suplente igualmente modesto?

Um espaço para uma corda
A corda parece ser um elemento importante no contexto da charada, dado que preenche o único espaço livre no primeiro plano dos 6 painéis. Todo o espaço restante é preenchido pelas figuras, incluindo o espaço simétrico no outro painel central, que se encontra ocupado pela cauda do vestido vermelho.
Pode-se dizer que os 3 únicos lugares que parecem preenchidos por objectos são o do espaço obscuro indefinido do painel dos Frades, o do caixote de madeira vazio e o da corda. Os dois primeiros parecem simétricos, apesar da desarrumação humana dos painéis menores, mais um elemento que aponta a charada, mas a corda não tem qualquer paralelismo simétrico no painel central adjacente:
  • parece representar a reserva de um espaço com alguma finalidade que por enquanto nos escapa, sem equivalente necessário no outro painel central.
Os significados simbólicos que têm sido atribuídos à corda inserem-se numa das três hipóteses seguintes:
  • um símbolo de união,
  • de navegação, 
  • do martírio de D. Fernando, que depois de morto foi pendurado das muralhas de Fez por uma corda.
 A representação gráfica do molho de corda unido por meio de nós, e justamente no painel que antes chamámos «da igualização», parece sugerir fortemente o primeiro significado. A segunda hipótese, numa época em que o progresso dos descobrimentos se situa mais no plano da exploração, do negócio e das expectativas, que das glórias nacionais oficialmente celebradas, parece bastante inferior; e a terceira, dada a aparente ausência do próprio infante mártir ou outras possíveis referências fernandinas no painel, um tanto deslocada.

Cortesia de paineis
A corda seria portanto, um símbolo de união num políptico de aparência ecuménica, repleto de figuras muito diferentes umas das outras, provenientes dos três estados do reino, nobreza, clero, povo, mas unidas por toda uma ambiência em torno de uma figura central dupla. O problema que permanece é apenas o da assimetria da corda como elemento central, sem correspondência similar à que equilibra a caixa de madeira com o espaço negro ambíguo». In Painéis de São Vicente de Fora.

Cortesia de Painéis/JDACT