segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

César de Frias. A Afronta António Nobre. Parte V. «A directriz acentuada dos espíritos era exactamente para o ‘ir de mal a pior’ dessa decadência das sociedades. E mentiu-lhe o seu sentir profético? Dê corajosamente a resposta algum de nós, que, vivendo neste pandemónio actual, não seja por completo cego de entendimento…»

Cortesia de livrariacentral

O Poeta do SÓ
«A seguir, Camões, o grande épico da Raça,

Camões: ó lua do mar bravo!
Vem-me ajudar…

Depois, Garret, o delicado heleno que andou de joelhos a beijar a terra portuguesa,

O' Garrett adorado das mulheres,
……………………………………..
Que falta fazes á Lisboa amena!
Anda vêr Portugal ! parece louco...
Que pátria grande! Como está pequena!

Ombro com este, Antero, o Santo, a caminho do céu e duvidando da sua existência, com o cilício da dúvida a sangrar-lhe o espírito sem um momento de descanso.

Quero
Mas é ir, á Ilha, orar sobre a cova do Anthero

Aspirava religiosamente. E pedia ao sol de Junho assim:

Sol de Junho queima as minhas estantes
Poupa-me a Biblia, Anthero... e pouco mais!

Finalmente, de tropel, com os seus mortos, seus pais, sua ama, seus amigos, todos os familiares da sua infância e da sua juventude, levados no tufão que tudo leva, Job e as demais figuras da Bíblia, dolorosas, arrepeladas, cheias de ira e de sublimidade, e, de mistura com elas, a raça lusa, a grei de outrora, a que andara no mar largo em meio de tempestades, a descobrir novos mundos e a atrigueirar a pele no incêndio de mil batalhas, o povo de santos e de heróis, a alta marinhagem da nau da Pátria, de quando ela singrara em horas divinas, sobre as ondas altas, de alto capitaneando as outras raças e jugulando os ímpetos hostis da Natureza.


Cortesia de livrariacentral

Num ambiente político nacional sórdido e desnorteado, com o seu quê de desmanchar de feira, contrastando violentamente com esse passado de prestígio e de elevação; num momento social espiralado de interrogações, em que já começavam de fermentar as lutas temerosas que nos angustiam hoje; numa época de demolição das velhas crenças e dos velhos ideais e de ensaio de novos sistemas filosóficos, mal nascidos, logo moribundos; num período de assalto feroz a tudo que a tradição fortemente enraizada na alma humana ungira de fé, sonho e espiritualidade; enfim, num ambiente tenebroso, num momento rugidor e revolucionário, numa época irrequieta, num período de transição dum estado de coisas, que se dizia mau, para um outro, que, envolto ainda na poeirada do que ruía, não se descortinava melhor nem mais belo; qual a saúde imperturbável e mansa que poderiam gozar os espíritos que medravam nessa convulsa e decadente era de há trinta e tantos anos, em que António Nobre desabrochou o seu espírito fino e melindroso? A mesma que nós, os de hoje, com esses trinta e tantos anos passados, podemos gozar, uma saúde precária, débil, cortada de dolorosidades e desânimos suicidantes, pois cada ano que sobre esse tão próximo ontem tem corrido não tem feito mais do que trazer novos e terríveis problemas aos nossos cérebros, novos e sangrentos dramas aos nossos corações.

Têm-se acogulado nos horizontes mais nuvens negras de tragédia, e o ar, cheio das emanações pútridas do cadáver da velha ética, que dia a dia mais se pulveriza, aos pontapés da turba truculenta, já fede, asfixia, intoxica. Vejam-se os costumes, o congestionamento das cidades, o êxodo dos campos, o referver das ambições, a sede do ganho, o luxo sem freio, o alastramento dos hospitais e das cadeias, uma torrencial literatura feita quase só com taras e anomalias. E, no meio disto, quem ousará, pois, escancarar a boca num riso aberto, vibrante e triunfal, num canto argênteo e apoteótico? Quem, além das crianças, cuja ignorância da vida as imuniza do desgosto pelo mundo actual?

Cortesia de sabedomessias

Quem, de entre os adultos, senão os ébrios e os loucos?
Assim:
  • com um meio tão crispado e incerto a envolvê-lo; com aqueles elementos de cultura, a Bíblia, Shakespeare, Camões, Garrett, Antero, como alimentos predilectos do seu espírito;
  • com o seu enorme poder de evocação, exercendo-se, ora sobre a ridente e despreocupada quadra da infância, ora sobre a virilidade esplendente da sua raça;
  • e, para mais, com o seu organismo fraco de doente do peito, juntando a tortura física à tortura psíquica originada nos males do mundo;
  • a poesia de António Nobre não poderia resultar diferente da que ele nos deu, - triste, elegíaca, febril, ladainhante, supersticiosa, sombria, desesperada, macabra, mas, acima de tudo e como melhor importa, radicalmente portuguesa, profundamente sincera, magnificamente lírica e bela.
Se exagero parece haver por vezes nos seus lamentos, saídos duma concepção unilateral e pessimista da vida, é que o dom da profecia, peculiar aos grandes Artistas, vibrava vigorosamente nele: sendo desolante o aspecto do mundo do seu tempo, o Poeta não via sinal de mutação à sua roda, não via que um movimento de reacção operasse a aleluia daquela sexta-feira de paixão. Pelo contrário. A directriz acentuada dos espíritos era exactamente para o ‘ir de mal a pior’ dessa decadência das sociedades. E mentiu-lhe o seu sentir profético? Dê corajosamente a resposta algum de nós, que, vivendo neste pandemónio actual, não seja por completo cego de entendimento… (11)». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

Continua
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT