sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Leonel Borrela. Cartas de Soror Mariana Alcoforado. Das Lettres Portugaises. «Denunciam a sua eminente prostração, mas não a consomem, pois ela irá viver muitos mais anos, não sabemos se para cortar de vez com essa apaixonada obsessão ou se para vivê-la no silêncio»

Cortesia de 100luz

Das Cartas e da sua época
«Lettres Portugaises é a denominação por que são conhecidas mundialmente as célebres cartas de amor portuguesas editadas em Paris, em 1669, pelo livreiro francês Claude Barbin. O Privilégio Real, datado de 28 de Outubro de 1668, permitir-lhe-á o exclusivo editorial, em França, pelo prazo de cinco anos.
Com efeito, a primeira edição ou edição princeps, saiu do prelo no dia 4 de Janeiro de 1669, sob o título de “Lettres Portugaises traduites en François”. Há uma tendência bastante generalizada para negligenciar o teor da totalidade deste título. Normalmente sublinha-se somente “Lettres Portugaises” e, quando é citada a informação completa do título original, ignora-se, também bastantes vezes, o verbo francês ‘traduire’ (traduzir) substituindo-o por ‘écrire’ (escrever), além de se transcrever ‘françois’ como ‘français’ (forma actual). Cartas Portuguesas traduzidas em francês não é, obviamente, o mesmo que Cartas Portuguesas escritas (que poderiam ter sido ou não traduzidas) em francês. São pormenores desta natureza, involuntários ou não, mas ditos comezinhos por quem desconhece as características nefastas da sua diversidade e o peso mediático do seu somatório, que ocultam ou tentam ocultar, a verdade subjacente ao título, isto é, à autoria portuguesa das Cartas.

Barbin, na sua advertência “Av Lectevr” (Ao Leitor), refere o trabalho árduo que teve para obter nas melhores condições as cinco copias das cartas portuguesas que já andavam manuscritas e traduzidas para francês e argumenta que a publicação, além de prestar um bom serviço a quem tanto as procura, contribui para a sua preservação. Afirma também que desconhece quem as escreveu, quem as traduziu e a quem foram dedicadas, conquanto saliente “un Gentil homme de qualité, qui servoit en Portugal” (um gentil homem de qualidade, que serviu em Portugal).

A persistência das capitulares e dos ornamentos à cabeça
Cortesia de 100luz

A edição ‘princeps’ vai originar, ainda no mesmo ano de 1669, reedições, novas edições e contrafacções, sempre em língua francesa, mas em locais diferentes como Amesterdão (Holanda) ou Colónia (Alemanha), além de Grenoble e Lyon, igualmente em França. Seguir-se-ão muitas mais edições em francês, inglês, italiano e alemão, até ao começo do segundo quartel do século XX, período charneira de mudança de atitude, como veremos, face à tradicionalmente reconhecida autoria portuguesa das Cartas.
Numa outra edição, de Isaac van Dyck, do mesmo ano de 1669:
  • “Lettres d'une Religieuse Portugaise, traduites en françois”;
  • e ainda noutra, de Corneille de Graef também contemporânea das anteriores, mas de 1690 “Lettres d'Amour d'une Religieuse Portugaise ecrites au Chevalier de C. officier françois en Portugal”,vemos como os títulos vão esclarecendo quem escreve o quê e a quem.
A insistência da presença portuguesa expressa nos títulos, prefácios e conteúdo de obras seiscentistas portuguesas, publicadas por Barbin, como a que refere a crónica de Francisco Alcoforado (1427?), companheiro de Zarco, sobre a descoberta da ilha da Madeira, não parece ser coincidência, como que a tentar provar aos incrédulos a relação familiar, genuína, entre Mariana, cujo nome familiar só alguns conheceriam, e aquele membro mais antigo dos Alcoforados.

NOTA: De igual modo se poderia, provavelmente, relacionar a família de Mariana Alcoforado com um dos primeiros impressores de Braga, em 1521, Pedro Gonçalves Alcoforado, de que A. Forjaz de Sampaio dá notícia na sua obra ‘A Tipografia Portuguesa no século XVI’. Os Alcoforados foram também uma família ligada à tragédia, e não só através de Mariana, pois um seu antepassado, António Alcoforado, foi morto por ordem do 4º duque de Bragança, D. Jaime, em 1512, devido a uma intriga palaciana que o denunciara como amante da jovem duquesa D. Leonor, de 23 anos de idade. De um lado a escrita, a cultur e, do outro, a paixão e a desgraça...no tempo de Vasco da Gama, cujo descendente, D. Francisco da Gama, conde da Vidigueira, seria, em 1640, o padrinho de baptismo de Marianna.

Assento de baptismo de Mariano Alcoforado
Cortesia de 100luz

O sucesso das Cartas foi de tal natureza que bem depressa se lhe associaram mais sete (tal e o caso da edição do 2º tomo de Isaac van Dyck, de 1669), além das ficcionadas respostas de Chamilly (exemplo da edição de Corneille le Graef, de 1690). Assim, os livreiros, engrossavam a obra e aumentavam os lucros, fazendo até contrafacções para fugir ao fisco.
Mas, afinal, o que têm as Cartas de tão especial para a época, o que as distingue de tantas obras criadas, recriadas, imaginadas, por tantos eruditos de salão, desejosos de fama, de escândalos freiráticos, realengos e aristocratas, levando-os a competir uns com os outros por um lugar ao sol nos salões das não menos célebres madames de Maintenont, de La Fayette, de Scudéry, de Sabliere e de Sablé, entre muitas outras? Descomprimir um pouco dos códigos da corte de Luís XIV, proporcionava aos intervenientes, homens e mulheres, momentos de "honesta liberdade" e de rara felicidade, pois nesse tempo a possibilidade de um encontro privado era tão rara que um homem e uma mulher, quando o tinham, não podiam perder tempo com conversas de janela. Neste contexto, algo hedonista, surgem as primeiras edições das “Lettres Portugaises”, cuja menção é notória, em 1671, nalgumas das cartas escritas por Madame de Sévigné (1626-1696) a sua filha Madame de Grignan ao referir-se ao conteúdo tão afectuoso da carta que recebera de Madame Brancas. Porém, apesar de revelarem uma grande admiração pela exacerbada fogosidade das Cartas portuguesas e demonstrarem o quanto já eram conhecidas, a generalidade dos leitores só tomaria contacto com a intimidade e os assuntos tratados nas cartas de Sévigné depois da sua primeira edição clandestina e das seguintes, a partir de 1726. Acreditava-se que de facto aquelas cinco epístolas tinham sido escritas por uma mulher portuguesa, religiosa, enclausurada num convento em Portugal, a qual, de tão amorosa que foi, desditosamente, se perdeu apaixonadamente por um oficial francês, regressado a França, depois de ter combatido os espanhóis pela independência do nosso país. As Cartas são um grito de dor, de desencanto total, de repúdio pela constante indiferença que Mariana percebe através das parcas cartas do seu amado. Denunciam a sua eminente prostração, mas não a consomem, pois ela irá viver muitos mais anos, não sabemos se para cortar de vez com essa apaixonada obsessão ou se para vivê-la no silêncio». In Leonel Borrela, Cartas de Soror Mariana Alcoforado, Edição 100Luz, 2007, ISBN 978-972-99886-7-7.

Cortesia de 100Luz/JDACT