segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Damião de Góis. Elisabeth Feist Hirsch. «O entusiasmo de Damião de Góis por Erasmo como pensador e como pessoa faz com que a sua vida seja especialmente apropriada […] entre certos pontos de vista humanistas e as consequências intelectuais dos Descobrimentos»

Cortesia de cappellabracarensis97

«Os estudiosos têm dificuldade em chegar a acordo sobre o significado do humanismo renascentista. As diferenças de opinião giram, a maior parte das vezes, em redor destas duas perguntas:
  • Qual é a melhor maneira de definir o movimento humanista?;
  • Como interpretaram os humanistas de Quinhentos os seus próprios objectivos?.
Como esta biografia de Damião de Góis se destina a ser uma contribuição para o estudo do humanismo renascentista, vou tentar clarificar o termo 'humanismo' na acepção em que vai ser empregado nas páginas que se seguem.
O humanismo renascentista é acima de tudo um movimento cultural. É verdade que vários grupos humanistas, como os Jesuítas e os Erasmistas, revelaram um interesse comum pelo fomento da compreensão e da publicação de material de fontes da Antiguidade e que humanistas de vários credos tentaram adoptar novos métodos de estudo de pesquisa em muitas disciplinas de carácter erudito. Os grupos de humanistas interpretaram a cultura da Antiguidade de formas diversas. Damião de Góis foi um dos mais dedicados discípulos de Erasmo, bem como amigo íntimo do pensador holandês. A atitude de Erasmo para com a literatura da Antiguidade é portanto de especial pertinência para o presente estudo da vida de Góis.

O movimento humanista de que Erasmo foi o líder reconhecido tem sido justamente designado de "humanismo cristão", devido ao profundo interesse de Erasmo pelas antigas fontes cristãs e pelos problemas do Cristianismo. Contudo, qualquer humanista cristão que se inclinasse a absorver a literatura da Antiguidade no verdadeiro sentido do termo, isto é, incorporando as ideias dessa literatura no seu próprio pensamento, defrontava-se com um sério problema. É que a Antiguidade pagã fazia parte de um determinado cosmos que incluía os deuses (ou um deus) por quem, ao contrário do que sucedia com o deus-criador cristão, não fora revelada mensagem alguma destinada a ser seguida pelos homens. Desse modo os filósofos da Antiguidade “especulavam“ livremente sobre a existência do homem, ao passo que os cristãos acreditavam na veracidade da Bíblia. Em consequência desta divergência de atitudes, Tertuliano tinha redondamente negado que "Atenas" tivesse qualquer relação com 'Jerusalém', e São Jerónimo, o grande modelo de Erasmo, tinha uma noção aguda do problema que existia quanto à possibilidade de conciliar estes dois conceitos. Também alguns humanistas cristãos do século XVI tinham, de igual modo, consciência deste conflito e tentaram com maior ou menor êxito manter à parte as duas esferas de interesse, a Cristandade e a Antiguidade pagã.

Alenquer
Cortesia de ecosdotempo

Erasmo acreditava que os princípios do cristianismo se situavam num plano ético mais elevado do que os ensinamentos dos antigos filósofos, mas julgava que o estudo dos antigos autores pagãos conduzia a uma compreensão mais profunda das doutrinas cristãs. Essa convicção era partilhada por Melanchton, que defendia uma “fé culta”, uma fé fortificada e não enfraquecida pelo saber humanista. Vê-se logo que uma tal fé, apoiada no conhecimento, diferia da das gerações anteriores, menos familiarizadas com a herança da civilização antiga, ou duma fé de simples submissão a um ser superior. Uma “fé culta”, por outro lado, apesar de não ser necessariamente idêntica a uma abordagem racional da religião, atribuída a Erasmo em críticas frequentes, com certeza que acentuava os aspectos subjectivos da religião. Assim, Erasmo pensava que o homem devia procurar a verdadeira piedade no exame do espírito e da alma, em vez de esperar que Deus ‘instalasse’ nele a fé verdadeira. Esta ideia representou um passo importante em direcção à “fé humana”que se tornou parte essencial da vida moderna. Dado este passo na compreensão da religião, estava aberto o caminho, que Erasmo certamente não previra, para que futuras gerações fabricassem um mundo controlado, não tanto por Deus, como pela vontade dos homens.
O entusiasmo de Damião de Góis por Erasmo como pensador e como pessoa faz com que a sua vida seja especialmente apropriada para consubstanciar a tese que acabo de expor. De mais a mais, como Góis foi um português que seguiu de perto os feitos ultramarinos do seu país, a sua biografia traz à luz uma notável semelhança entre certos pontos de vista humanistas e as consequências intelectuais dos Descobrimentos. Assim como as explorações dos portugueses suscitaram em Góis um forte espírito de patriotismo, o interesse e a admiração pela Antiguidade fizeram com que muitos humanistas sentissem o mesmo em relação aos seus países. O interesse juvenil de Góis por terras distantes teve posteriormente uma contrapartida no seu amor pelas viagens e no seu zelo pela observação científica, qualidades essas que caracterizavam largo número de humanistas. Além disso, o conhecimento da fé etíope que Góis tinha desde a juventude explica em grande parte a sua largueza de vistas em matéria religiosa. Na fase de maturidade tornou-se, à semelhança de Erasmo, vigoroso defensor da reconciliação das Igrejas.
A vida de Góis estendeu-se por três quartéis do seculo XVI. Nasceu em 1502 em Alenquer, sossegada vila da província, a cerca de quarenta milhas a norte de Lisboa, filho do fidalgo português Ruy Dias e de sua quarta mulher, Isabel. Embora Dias pertencesse meramente à pequena nobreza, os filhos tiveram o privilégio de entrar ao serviço pessoal do grande monarca português D. Manuel I, e desse modo Damião ingressou aos nove anos na Casa Real, onde seu meio-irmão Frutuoso já servia como camareiro. Em 1523 D. João III, sucessor de D. Manuel, nomeou Góis secretário da Casa da Índia, nome da feitoria portuguesa em Antuérpia». In Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1967.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT