quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Fernando Campos. O Lago Azul. «Funestos sucessos, dizem parciais de um bando. Heróicos, aplaudem de outra parte. Cobardes, rosnam terceiros. Vão lá entender-se os homens. Moamos o pão da história, que disso se trata - rangem as mós»

Cortesia de geneall

Ronda Primeira
«Moinhos. Meus amigos. Sou a alma deles. Mal lhes sopro, dão em girar velas, em arfar no esforço de mover engenhos. Lá no norte, nos pólderes e ribas de canais das Nederlenden. Nos adejos meridionais do mistral. Na desolação do planalto de Castilla. E em Évora, onde o rei João terceiro concedeu privilégio a Jerónimo Fragoso de construir um ao modo holandês. Ou na encosta da ribeira de Alcântara, em que o alemão Georg Erwert, isentado pelo rei do foro de quatro moios de trigo ao ano, me lançou ao respiro asas de umas tantas moendas.

Não por acaso corro de Kinderdijk, de Schiedam e de Zaandam, até às colinas portuguesas. Moinhos. Meus amigos. Muito terão que contar. Eles como eu que os movo, testemunhas neutras, presenciámos os acontecimentos de terras tão distantes e afinal tão ligadas. Funestos sucessos, dizem parciais de um bando. Heróicos, aplaudem de outra parte. Cobardes, rosnam terceiros. Vão lá entender-se os homens.
Moamos o pão da história, que disso se trata - rangem as mós. Ouçamos mas é - respondo-lhes - os humanos remoer suas razões:
- Não me conformo, senhor doutor. Onde estão as virtudes dos nossos avós?
- Ora, dom bispo! As virtudes! Com toda a vossa autoridade moral, por mais que procureis...
- E vós? - interrompia, levando aos lábios a taça de branco capitoso, Dom Frei Gaspar do Casal, bispo de Coimbra, ao doutor Matos de Noronha, lente de leis da universidade. - para onde fugiu toda a vossa ciência?... Eu sei que, por mais que procure, só haverei de encontrar cobardia, corrupção, veniaga... Deixais-vos corromper também vós?
- Corromper, eu? Digamos que sou prático...
- … e tomais partido pelo rei estrangeiro… Vede. Além, no norte, assistimos ao erguer-se de uma nação nova. Aqui, à queda da nação mais idosa da Europa.
-Ainda não caiu.
-Acolá levantou-se um povo de vontade indomável que arrancou a terra às ondas do mar e às marés do domínio estrangeiro. Aquém, nas terras banhadas por um mar há muito domado, o bravo povo que o amansou deixou-se abater. Lenta, lenta agonia...
Acolá, aquém.. . alhures, algures, no rodar das eras...

Cortesia de difel

Só eu a senti chegar, que também sou andarilho como ela. De longada vinha, do tempo e do espaço. Queria arruinar o pequeno reino, ceifar-lhe as gerações que podiam ascender ao trono e garantir-lhe isenção e natureza própria. Sem bafo, invisível, leve, gélida, em sua passada silenciosa. Buliu-se-me o ser, dei em agitar-me aqui e além animando pequenos torvelinhos de folhas amarelecidas em redor das árvores, poeiras dos caminhos, que por instantes rodopiaram, bailaram e logo pousaram mortas no chão. Pelo terreiro, pelo souto, por pátios de paços e eiras de granjas, galinhas erriçavam súbito as penas e desatavam loucas a fugir num cacarejo espavorido. Tremem de frio os velhos estugando o trôpego em direcção a casa. Jesus! Santo Deus! - gritam as donas.

Já antes ensaiara ela uns passos, lanços, gestos mágicos desta ronda macabra, no tempo do rei João, segundo deste nome. Trotava Afonso, o filho herdeiro, e único legítimo é bem de ver, pela ribeira de Santarém. Ia e tornava, ia e tornava. O patear do cavalo soava a chocalhar de ossos de esqueleto. De repente - bastou um rebo do chão? -, ela derribou-o da sela e o príncipe caiu desamparado, o crânio rachado, aberto, a escorrer sangue e vida. Caladas, mulheres! Tende mão, senhores! Calados, pai e mãe! Não choreis tão alto. O príncipe dorme o sono eterno...
Também o rei, dizem que envenenado, acabara seus dias na vila de Alvor. Havia descido de Évora em busca de cura nas águas das termas.

Cortesia de pedroalmeidavieira 

Pela jornada, uma tarde descansando à sombra de um carvalho jogara xadrez, mas a rainha do lado oposto do tabuleiro trazia consigo um longo gadanho e mostrava os dentes sem gengivas num esgar de troça... Dança, rei, dança teu derradeiro serão com ricos vassalos que, à luz dos archotes, na lamúria do “Dies irae”, te acompanham a sepultar em Silves, esticadinho e inerte no esquife amantado de veludo negro, em dorso de mula...
Pequenos torvelinhos de folhas amarelecidas, poeiras dos caminhos rodopiaram, bailaram e logo pousaram mortas no chão. . . Em mais seis finamentos, além daqueles dois, assentara o alçamento a rei do primo Manuel. Encarniça-se agora ela sobre este e seus descendentes.
Que é isso, rei? Vais casar-te com a viuvinha do príncipe caído do cavalo? Deixá-la-ei emprenhare, na hora do parimento, zás! mais um lanço mágico, passes e trespasses, volteios e revolteios... e despacharei mãe e depois filho...

Não chorou muito tempo o monarca seu nojo e, em segundas núpcias, desposa a irmã da primeira mulher, a formosa princesa Maria de Castilla. Dez filhos! Farta seara! Afia a roçadoira e começa a cevar neles a insaciável fome. Dezasseis anos andou e desandou, rondou e tornou a rondar, ao cabo rematou com levar, de novo de uma assentada, mãe e filho na hora de parto. Não aguarda o prolífico rei se acabe o nojo e memória da saudosa rainha. Ao ver o retrato da bela princesa de dezanove anos prometida a seu filho primogénito e herdeiro, cobiça-a para si e põe em obra com ela casar-se. Escandaliza-se o reino, o povo murmura. Idade avançada, brancas as barbas, buscar mulher ainda moça?... Nasceu-lhes um filho, morto ao cabo de um ano, e uma filha. Deixai-a medrar. A monda anterior não está acabada. Para já o rei velho vem comigo...

Por instantes poeiras dos caminhos, amarelecidas folhas sob as árvores rodopiam, bailam e logo pousam mortas no chão... Dos que foram resistindo à leva dos filhos do rei Manuel, além desta menina acabada de nascer, João por morte do pai ascende ao trono. A desassossegada Mondadeira vira-se-lhe para os irmãos. Furta Fernando, duque da Guarda e de Trancoso, e sua mulher Guiomar mais os filhos de ambos, no espaço de três meses, triste caso, que a fama vozeava havia sido castigo do Céu! Corre a Nice, na Sabóia, aonde fora a casar-se a infante Beatriz com o duque Carlos terceiro. Vem a Toledo a cortar os dias, em plena finura de radiosa beleza, à imperatriz Isabel de Portugal, tão chorada! Arreganha-se contra o infante Duarte, duque de Guimarães, leva-o consigo e vem depois olhar o restolho da grande monda manuelina. Só restam quatro filhos:
  • João, rei terceiro do nome, seus irmãos, os infantes Luís e Henrique, e a irmãzinha Maria, filha serôdia...».
In Fernando Campos, O Lago Azul, Difel, 2007, ISBN 978-972-29-0874-0.

Cortesia de Difel/JDACT