domingo, 26 de fevereiro de 2012

Épica. Temas Épicos. José Mattoso. «Resta, portanto, e “gesta”, de Afonso Henriques, onde, todavia, se tem de reconhecer, por um lado, que parece tratar-se mais de um poema destinado a explicar o destino trágico de Afonso Henriques do que a descrever a sua grandeza combativa, e ainda por cima concedendo um lugar fundamental ao episódio do ‘bispo negro’, alheio ao género épico»

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«Até à década de 1950. prevaleceu em Portugal o princípio estabelecido por Ramón Pidal da inexistência de uma épica medieval portuguesa. Tratava-se de um género eminentemente castelhano. Também não teria existido uma épica galega. Os jograis galegos não teriam o mínimo gosto pela poesia narrativa. Assim se explica que Rodrigues Lapa não faça a mínima referência à épica nas suas “Lições de Literatura Portuguesa”, nem mesmo nas edições recentes, e que o mesmo aconteça no volume consagrado à Idade Média da “História da Literatura portuguesa” de Costa Pimpâo.

Durante a década de 50, porém, Lindley Cintra e António José Saraiva puseram em causa este princípio. A “Crónica Geral de Espanha de 1344”, cuja origem portuguesa foi então demonstrada por Cintra, incluía muitas versões prosificadas de cantares de gesta mais extensas cio que noutras Crónicas conhecidas, e a tradição historiográfica portuguesa mencionava episódios ou ‘estórias’ com um carácter talvez não tão marcadamente épico como as mais célebres composições castelhanas, mas, pelo menos, bastante próximas do género, como mostram os exemplos mencionados mais abaixo, sobretudo aquele texto a que o mesmo autor chamou a “Gesta de Afonso Henriques”. O facto de nesta encontrar vestígios temáticos comparáveis aos dos poemas épicos castelhanos, e mesmo vestígios formais, leva-o a publicar em 1979 uma pequena obra que intitulou justamente “A Épica Medieval Portuguesa”, na qual inseria uma tentativa de reconstituição formal do referido ‘poema’, analisava o seu conteúdo, e propunha uma hipótese de explicação para as suas origens e significado. Parecia assim demonstrada a efectiva existência de uma verdadeira épica portuguesa, sem a mesma pujança que a castelhana, mas que de toda a maneira não se podia ignorar. Infelizmente a proposta de António José Saraiva não suscitou a discussão que parecia merecer, da parte de especialistas espanhóis e dos historiadores da literatura portuguesa; apenas obteve a concordância expressa de Lindley Cintra.

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De facto, a lenda do rei Ramiro, nas duas versões, o tema central é o da infidelidade da rainha e do casamento com a moura Urtiga. A lenda de Egas Moniz é muito mais a história exemplar da fidelidade vassálica e de uma astúcia compensadora do que uma narrativa de combate e de heroicidade: é muito provável que tenha sido composta pelo trovador cortesão Johan Soarez Coelho para reivindicar um lugar eminente na corte de Afonso III. O relato da tomada de Santarém na “Crónica de 1314” deriva formalmente do “De expugnatione Scalatbis”, que apresenta, de facto, alguns passos de carácter épico, mas dificilmente poderá basear-se num cantar de gesta anterior. O relato da batalha do Salado é uma nítida composição em prosa: tudo indica que se deve, como o próprio Saraiva mostrou, ao último refundidor do “Livro de Linhagens”, que trabalhava para o prior do Hospital Álvaro Gonçalves Pereira; o seu carácter épico não pressupõe de modo algum uma canção de gesta anterior.

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A breve alusão do mesmo ‘Livro’ ao feito de Soeiro Mendes da Maia, que ‘tirou o feu da Espanha que haviam d’haver os Romãos’ é demasiado sucinta pare se poder formar uma opinião acerca do seu teor primitivo.
Enfim, a narrativa acerca de Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, que eu em 1983 admitia ter estado outrora associada à de Soeiro Mendes, seu ‘irmão’, também não apresenta nenhum vestígio de uma forma poética anterior: é impossível imaginar em que tipo de narrativa se inspirou o refundidor do título XXI do “Livro de Linhagens” para nos dar a ‘estória’, que hoje conhecemos.

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Resta, portanto, e “gesta”, de Afonso Henriques, onde, todavia, se tem de reconhecer, por um lado, que parece tratar-se mais de um poema destinado a explicar o destino trágico de Afonso Henriques do que a descrever a sua grandeza combativa, e ainda por cima concedendo um lugar fundamental ao episódio do ‘bispo negro’, alheio ao género épico.

Isto não quer dizer que os portugueses dos séculos XII a XIV não tenham sido ouvintes interessados de cantares de gesta. A versão da lenda do Cid que diz ter sido armado cavaleiro em Coimbra, da história do rei Garcia que teria sido preso em Santarém e que, em Coimbra, chorava diante das raparigas que iam buscar água, o texto latino do “De expugnatione Scalabis”, a gesta provavelmente castelhana do “Abade João Montemor” mas que se passa entre Coimbra e Alcobaça, o poema perdido de Afonso Geraldes sobre o Salado, e outros indícios dispersos mostram que o género era apreciado em Portugal». José Mattoso, Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, organização e coordenação de Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani, Editorial Caminho, Lisboa, 1993, A Prosa Medieval Portuguesa, Fundação C. Gulbenkian, 1997.

Cortesia da FC Gulbenkian/JDACT