quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Portugal e a Ásia Oriental. João de Deus Ramos. «Considero o ‘Regimento de Almeirim’, de 1508, como o primeiro marco no nosso relacionamento com a China, por nele se conter o ímpeto inicial que levaria ao diálogo luso-sínico e pelo pormenor daquilo que o monarca Manuel I pretendia saber»

Cortesia de foriente

Portugal e China: Imaginário recíproco
«A Antiguidade e a Idade Média legaram ao Ocidente, nos alvores renascentistas, todo um ideário fantasmagórico sobre a Ásia em que, sem destrinça, o pouco que era factual estava embebido da imaginação, mitos e lendas dessas paragens e civilizações. Tal era a bagagem que os Portugueses da expansão levavam ao rumarem ao Oriente:
  • Oriente Asiático esse que, no curtíssimo espaço de meio século, de 1498 em Calecut a 1543 em Tanegashima, seria ‘achado’, pelos nossos navegadores, comerciantes, aventureiros e missionários.
A experiência da alter idade provoca reacções imprevisíveis, pois o conhecimento do ‘outro’ é em parte subjectivo. Reportando-nos aos primeiros contactos com a China e ao significado que por essa razão tiveram, não admira que a narrativa não seja uniforme quanto aos juízos de valor: ‘da admiração acrítica à rejeição apriorística, naturalmente tudo se encontra’.
Interessará buscar as médias ponderadas e não os extremos; tratar-se-á aqui da China no período que vai aproximadamente da chegada do primeiro português, Jorge Álvares em 1513, ao estabelecimento de Macau, a partir de 1557; e sobretudo, para complementar a imagem que os primeiros portugueses tiveram do Império do Meio, a maneira como os chineses nos viram e procuraram entender.

Os nossos cronistas e autores do século XVI, e a historiografia contemporânea, dão-nos os meios, ao alcance de todos, para reconstituir as nossas primeiras impressões do mundo sínico. Não pretendo aqui abrir caminhos novos na matéria, nem fazer análises exaustivas, mas tão só traçar as linhas gerais, sumariamente, do que é geralmente conhecido. Mas tentarei aprofundar um pouco mais a maneira como os chineses nos viram, porque se trata de campo menos explorado, e porque pelo confronto das imagens recíprocas passa o conhecimento sobre a interpenetração cultural e civilizacional.

Cortesia de wikipedia

São escassas as traduções para línguas ocidentais de textos chineses, escassíssimas quando se extravasa dos grandes clássicos, e apesar de termos sido pioneiros em estudos chineses no século XVI, a sinologia portuguesa tem decaído ao longo dos séculos, até chegar à inexistência dos nossos dias.
Em consequência, a historiografia portuguesa moderna sobre Macau e a China sofre sistematicamente de desequilíbrio no recurso às fontes que, por força das circunstâncias, quase se limitam às ocidentais. As breves linhas que se seguem não fogem a esta crítica, pois embora estudioso da língua e cultura chinesas, não sou sinólogo.

Imagens da China e dos chineses
Uns quatro anos antes de Jorge Alvares pôr pé em terra chinesa, Diogo Lopes de Sequeira encontrava em Malaca, em 1509, os primeiros chineses. Decerto não esquecia as instruções precisas que recebera um ano antes, do monarca Manuel I, constantes do Regimento de Almeirim, em que lhe ordenava, ‘perguntareis pelos Chins...’ (cartas de Affonso de Albuquerque, publicadas pela Academia das Ciências de Lisboa, sob a direcção de Bulhão Pato, 1848, Tomo II, pp.403-419. Considero o ‘Regimento de Almeirim’, de 1508, como o primeiro marco no nosso relacionamento com a China, por nele se conter o ímpeto inicial que levaria ao diálogo luso-sínico e pelo pormenor daquilo que o monarca pretendia saber. Nele está implícita também a possibilidade de conquista, em consonância com as estratégias globais de Manuel I). Mas coube a Albuquerque, dois anos depois, ao conquistar Malaca, deixar-nos o testemunho desses primeiros contactos, positivos e prometedores, em que são enaltecidas a grandeza do soberano chinês e a riqueza da terra e das gentes. Em carta dirigida ao monarca, Albuquerque escreve que ‘os Chins servidores são de Vossa Alteza e nossos amigos’.

Os desaires em torno da Embaixada de Tomé Pires, na continuação dos excessos de Simão de Andrade, inverteram a tendência e sentido das nossas imagens da China; o que era bom obnubilou-se, embora sem desaparecer, o mau foi enfatizado. Mas passados estes episódios e o período difícil e violento nas relações luso-sínicas que se lhe seguiu por alguns anos, começou a surgir a convergência entre interesses portugueses e chineses, prioritariamente de natureza económica e comercial; e como corolário destes, a vantagem comum em manter os mares da China meridional seguros, o que passava pelos esforços conjuntos para eliminação da pirataria. Tal ambiente criou as condições para que o estabelecimento de Macau, em termos permanentes, se tornasse viável. Um conjunto de factores, e nenhum sozinho, concorreram assim para a presença fixa portuguesa naquele território, tornado rapidamente próspero pelos condicionalismos económicos da época, que nos foram particularmente favoráveis e de que os portugueses souberam tirar plenamente partido.

Cortesia de resobscura

As ‘Enformações’, as ‘Relações’, os ‘Tratados’, surgiram numerosos a tratar da China com um pormenor e rigor que o Ocidente desconhecia até então. A imagem voltou a ser predominantemente positiva, pois aos motivos se juntavam os móbeis para que assim fosse: aqueles decorrentes da genuína riqueza da civilização chinesa, estes da convergência de interesses que, de um modo tão palpável, tornaram áureos os primeiros anos de Macau. São significativas as palavras de Frei Gaspar da Cruz no “Tratado das Cousas da China”, «os Chinas a todos excedem em multidão de gente, em grandeza de reino, em excelência de polícia e governo, e em abundância de possessões e riquezas».

NOTA: Frei Gaspar da Cruz, “Tractado em que se contam muito por extenso As Cousas da China, com tuas particularidades, e assi do Reyno de Ormuz”, edição de 1937, Barcelos, Portucalense Editora, prólogo. Pode considerar-se este trabalho como o primeiro pilar da sinologia. Publicado em 1569, serviu de base ao livro do Agostinho espanhol Juan Gonzalez de Mendoza, ‘Historia de las cosas más notabeles, ritos, costumbres del gran Reyno de la China’, obra de grande impacto na Europa de então.

Faço minhas as palavras de Rui Loureiro, «Pode-se afirmar que a imagem da China na cultura portuguesa do século XVI se caracteriza por uma crescente positividade a partir de cerca de 1540, positividade essa que não tem paralelo em qualquer outra região asiática frequentada pelos Portugueses». In João de Deus Ramos, Portugal e a Ásia Oriental, Fundação do Oriente, 2012, ISBN 978-972-785-102-7, Comunicação apresentada à Academia Portuguesa da História, 5 de Abril de 1995.

Cortesia da F. Oriente/JDACT