segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Fialho de Almeida. Carta a D. Luís…: «Eis quem pode dar ao Brasil a imagem da alma portuguesa, de que a brasileira hoje exala, orgulho nosso, o mais divino quinhão da sua essência! Quanto a Adriano do Vale não significa nem dá coisa nenhuma, além do exemplo triste do que pode uma cabeça fraca ao serviço de uma política dissoluta»

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«Logo em seguida ao atentado, o imperador foi alvo de ovações que se repetiram, no dia seguinte e nos mais, por banda de todas as colónias e colectividades particulares e públicas do império. Pedro II correspondia aos testemunhos de apreço com a sua habitual simplicidade de grande velho conhecedor da gíria dos homens, contrafeito no íntimo por servir de joguete a estes passes ‘forains’ do seu governo.
A frieza que ele aparentou desde a primeira hora do crime, significa não tanto o desprezo da vida, como o das ilusórias festanças com que os ministros publicamente lhe retraem a majestade luminosíssima dos trabalhos e dos anos.
Teve, como monarca, uma palavra que rescende ligeiramente aos deveres cenográficos da sua profissão, e que alvitraríamos lhe houvesse sido aconselhada, se não fora sabida a sua austeridade.
Foi quando, chegado a palácio, depois da cena do tiro, rende graças por ter sido um estrangeiro, que não um filho do Brasil, o autor do atentado. Esta frase, repetida, pelo comissário de polícia, num ofício ao país, e pelo presidente do conselho, depois, ao plenipotenciário argentino, lembra um ‘mot-d'ordre’ de despeito ou reivindica, injustamente vibrado à mais activa, à mais inteligente e à mais prestante sociedade colonizadora do Brasil, a portuguesa. Ressai vagamente à assa-fétida de uma injúria, que nauseia, mesmo quando à face da crítica, nem sequer represente a digestão de um despautério. As grandes virtudes que exaltam o carácter de um homem, podem muitas vezes ser o reflexo das qualidades de um povo; mas raro é que os malandros isolados rearranjam outra coisa que não seja a maldade fermentada pelo meio moral em que eles vivem, ou a loucura, que nem sequer às vezes tem família, quanto mais ter casta ou nacionalidade!

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O conde de Matosinhos, partido da sua aldeia com um saco de roupa e um chapéu braguês, chegando à riqueza pela perseverança do seu esforço heróico e imaculado, e constituindo-se, espécie de rei pastor de uma grande tribo de obreiros incansáveis, em procurador de todos os desvalidos, sem discrepância de ser ou de nação; Ramalho Ortigão e Eduardo Lemos, vindo pela Europa até à Rússia, abrir mercados para os produtos agrícolas do império, e instalando num palácio magnífico o “Gabinete Português de Leitura”, a maior biblioteca actual do Rio de Janeiro; o barão do Alto Mearim, Martins de Pinho, fundando e subsidiando o ‘Liceu Literário Português’, onde se faculta a instrução a todos os indivíduos que a reclamem; António de Melo, o erudito e fino melancólico, entretendo com Camilo polémicas literárias do mais puro lavor; e como estes, duzentos mil portugueses do seu carácter ou do seu quilate, colaborando infatigavelmente, com a honra mais alta, em prol da civilização sul-americana, eis quem pode dar ao Brasil a imagem da alma portuguesa, de que a brasileira hoje exala, orgulho nosso, o mais divino quinhão da sua essência! Quanto a Adriano do Vale não significa nem dá coisa nenhuma, além do exemplo triste do que pode uma cabeça fraca ao serviço de uma política dissoluta.

Numa coisa somente os ensaiadores da comédia foram hábeis: a escolha do tirano! Esse país que tem no ‘capoeira’ o assassino ideal, científico, inverosímil, que abre ventres a um tanto, sem perguntar o nome sequer de quem paga, mais uma vez repulsou a indústria nacional, neste ramo perfeita, a benefício de um títere de fora, assegurando assim que a cena trágica não passaria de uma imitação». In Fialho de Almeida, Carta a D. Luís sobre as Vantagens de ser Assassinado, Assírio & Alvim, edição 1343, 2010, ISBN 978-972-37-1441-8.

Cortesia Assírio & Alvim/JDACT