sábado, 26 de janeiro de 2013

A Sátira na Literatura Medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a “mesura” e a grandeza? Onde pára a verdade? Quem é leal ao seu amigo? Que se fez do amor e do trovar? Porque anda a gente triste e sem cantar?»

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«Por isso aconselha Martin Moxa a que não se desquitem como ‘eu vi quitar alguen’. Em qualquer hipótese, temos, neste serventês, a apologia de dignidade humana. Pero Gómez Barroso, amigo de Afonso X e português, compôs outro serventês a dizer mal dos tempos de agora e bem dos tempos de outrora:

Ca vej’agora o que nunca vi
e ouço cousas que nunca oí.

Que nele haja ou não objectividade externa, isso parece-nos secundário. É na objectividade interna desse estado de alma que enraíza a beleza triste deste pranto dos tempos de agora: Nunca vi andar assim o mundo. O outro era diferente e é desse que gosta o meu coração! Nada me importa morrer, pois em nada acho gosto nen sei amigo de que diga ben. E no fim de cada estrofe, ouve-se o mesmo protesto de inadaptação à vida, na velhice: ca vej’agora o que nunca vi / e ouço cousas que nunca oí.
É a angústia dum homem que ficou sozinho no meio da nova multidão anónima e sem rosto. Esta sátira aos tempos novos, repetem-na, em prosa, os velhos de todas as gerações, mesmo simples camponeses. Os amigos morreram e os costumes são outros.
Pero Mafaldo vivia no século XIII e deve ser contado entre os trovadores alfonsinos da corte castelhana. Escreveu um serventês a despedir-se da verdade e poetou contra Pero de Ambroa e a famigerada Balteira. Pero Mafaldo, ironicamente, declara que irá mudando e mentindo. Toda a gente faz o mesmo. Falar verdade ao amigo? Não! Quem mente ganha com isso. Juro, pois, e digo que vou separar-me da verdade e querer mal a quem bem quero. Hei-de prosperar assim, como cavaleiro que sou. Que hei-de eu fazer, se a verdade para nada me serve nem aumenta a minha honra? Dai-me um conselho, por caridade. Assim vai a minha vida:
  • Se minto ao meu amigo e ao meu senhor, medra o meu proveito e cresço em importância. Sempre a eterna ironia; só medram os malandros e os hipócritas.
Um trovador desconhecido, mas de elevada categoria técnica e boa inspiração, deixou-nos uma poesia híbrida, de cantar de amor e de maldizer, contra o mundo e os homens. Também ele se lembra dos bons velhos tempos: Quem viu o mundo de antigamente e o vê agora, que há-de querer, senão desterrar-se algures? Mas o mundo é só um e este é falso. Para onde foram a mesura e a grandeza? Onde pára a verdade?
Quem é leal ao seu amigo?
Que se fez do amor e do trovar?
Porque anda a gente triste e sem cantar?
Ainda assim, vivo por amor duma senhora a quem muito quero, dos tempos em que amor havia. Fiquem, pois, a saber porque não me vou algur esterrar, se poderia melhor mund’achar. E este pensamento vai batendo no final de cada estrofe, como condenação inapelável dos tempos que já não são nossos. Até aqui, temos a impressão dum cortejo poético de velhos pranteadores. Contudo, esse cortejo não pára na Idade Média e salta aos olhos, por exemplo, na França do século XIX, mesmo entre escritores audazes e criadores. Alfred Musset condenava a geração nova por ser inculta, sans gaitê et sans amour. Chateaubriand escrevia, em 1831:
  • Tout paraît usé, art, littérature, moeurs, passion; tout se détériore. Lamartine afinava pelo mesmo diapasão e declarava que a França apodrecia numa esterqueira e tudo se desgastava e morria.
Eles não pressentiam, entre tantos outros escritores, o advento de Baudelaire e do frisson nouveau que depois faria estremecer Victor Hugo.

Afonso X e os Soldados
Afonso X, o Sábio, está no centro dum ciclo satírico, onde a poesia é meio de ataque e de defesa, como os panfletos de hoje em dia. Atacou, atacaram-no. E cada um tinha, em geral, as suas razões e os seus pontos fracos. Às vezes, nada tão lúcido como o ódio. Ainda infante, Afonso X troça dos maus conselhos do mordomo Rodrigo e dos peões todos calvos e sen lanças e con grandes çapatões. Os versos do rei valiam mais do que esta peonagem». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT