quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Continuamente vemos novidades, diferentes em tudo da esperança; do mal ficam as mágoas na lembrança, e do bem, se algum houve, as saudades»

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«Sá safou-se. Saiu da sala acabrunhado. Sentou-se cá fora a um canto e, muito bucólico e lírico, soltando azeda lágrima, disse entre dentes:

Dos motes o primor e altos sentidos,
os ditos delicados cortesãos,
que é deles? Quem lhes dá somente ouvidos?

Foi então que Sá teve uma visão. Saído de uma roseira em flor, um corpo esguio, de boas formas, cabelos encaracolados e claros, um dos olhos vivo e o outro resguardado por uma pala negra, imaterial como todas as aparições, flutuava diante de si um outro poeta que sorria e que dizia:

 - Todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.

Ele há cada cab…, pensou o Sá. Que poeta de pacotilha, este fantasma. Nem uma áurea mediania o orna, a este espectro... Sá ficou pelo jardim compondo éclogas:

 - Não hás-de mudar o mundo
por mais razões que despendas.

No salão do palácio, Nicolau e El-Rei, já muito bêbedos, cantavam Pilhérias antigas:

 - É filho de mulher,
traz o rosto por diante,
saberá quanto souber
e terá o que tiver,
ou é feio ou é galante.
É mais baixo que gigante
e é maior que pigmeu;
ou é fraco ou é possante,
nam é rei nam é infante,
ou é cristão ou judeu.

Sá sabia que estava ainda anunciado um tal Vicente teatreiro, muito em voga, que escrevia com erros de palavras e de ideias, coisas que tirava da infame massa popular, sem saber dominar ou plebeísmo, e que punha em fracos versos de redondilha, coisas monótonas que quebrava, como falso poeta que era, com versos de três ou quatro sílabas e mesmo com falhas tremendas do belo rigor métrico, coisas impossíveis no lirismo palaciano ou no de influência clássica…
Lá dentro, entretanto, El-Rei e Nicolau combinavam a plenos pulmões:

… É filho de mulher,
traz o rosto por diante,
saberá quanto souber
e terá o que tiver,
ou é feio ou é galante.
É mais baixo que gigante
e é maior que pigmeu;
ou é fraco ou é possante,
nam é rei nam é infante,
ou é cristão ou judeu.

E Sá, cá fora, muito tristonho:

 - Eles bebem, homem sua,
dói-lhes pouco a dor alheia
querem que nos doa a sua.

Deus, meu puro Deus, Jeová, Senhor, conduz à Terra Prometida aqueles que libertarás e ressuscita Jacob, Jacob o das cinzas que ninguém pode enumerar. Deus, meu puro Deus, Jeová, Senhor, conduz e protege, tu que resides nas mais belas moradas celestes, guia aqueles que com a tua mão direita plantastes...
Era o Pessakh, a Páscoa judaica, celebrava-se o Seder, a cerimónia pascal judaica, e já se fizera em segredo aspirar a mirra, e tinha-se celebrado o vinho, e fizera-se consumir o pãozinho ázimo, as ervas amargas, o doce mel, o ovo cozido em cinzas, o aipo, o harosset que é o bolinho misturado de vários frutos a simbolizar a argamassa com que os judeus construíram as suas casas no exílio do Egipto nos velhos tempos, o harosset tornado próprio da cerimónia. - Tudo isto em muito segredo, pois era mais que proibição.
Estavam agora à conversa, e faziam-no em voz segredada, tal era já o hábito de escutas e perseguições... Seria pior agora do que aquando da Queda do Templo? - Que podemos dizer nós, judeus, de El-Rei, se nem para os seus cristãos é de gratidão? Zacuto contava e um punhado de hebreus escutava atentamente. - Está-lhe na raça, no sangue. Desdenhou de Pedro, o navegador, e do grande Vasco, e de Magalhães, o coxo, que até um mar novo descobriu e que, tal como esse Colombo zarpou daqui para fora a servir os Espanhóis, ou de Tristão da Cunha que chegou a cegar pela dedicação em que andava, ou de Francisco de Almeida, ou de Afonso, o Albuquerque que andou tanto e tão bem pelo Índico... Ignorou Pacheco Pereira e os Cortes Reais. Sim, que a esse Pacheco mandou-o trazer ao reino em ferros e sem lhos tirarem dos pés, esteve muito tempo na cadeia, até que, por se saber serem falsas parte das culpas que lhe punham, o soltaram tão pobre como o que era quando foi para a Mina. E aos Cortes Reais desdenhou os serviços e ignorou-os, e sendo que eles lhe descobriram a Terra dos Bacalhaus… - Não é por aí que vive um povo raro? – quis um deles saber». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.


continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT