sábado, 26 de janeiro de 2013

Macau Histórico. Edição de 1926. Carlos Montalto de Jesus. «Em Malaca, o governador, Álvaro da Gama, que segundo se dizia, invejava Diogo Pereira, deteve-o sob o pretexto de que, como filho de Vasco da Gama, era ele próprio a personalidade competente para o importante cargo de enviado à China…»

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«Segundo o relato de Mendes Pinto, em cinco horas, uma força de sessenta mil homens e mais de trezentas embarcações reduziu Liampó a um monte de ruínas, uma catástrofe que custou as vidas de doze mil cristãos, dos quais oitocentos portugueses, que morreram nas chamas, a bordo de trinta e cinco navios e quarenta e dois juncos, perda que foi avaliada em dois milhões e meio de cruzados de ouro. Vestígios da colónia foram descobertos em Ningpo, no século passado, as ruínas de um forte em Chin-hae de construção nitidamente europeia, com as armas nacionais de Portugal gravadas num portão, e o próprio templo, perto do Portão da Ponte que foi atribuído aos portugueses de 1528 como a Associação de Recepção de Estrangeiros. Nos Anais de Ningpo está registado que no vigésimo sexto ano de Kia Tsing (1548) os japoneses atacaram Ningpo e que no ano anterior tinham sido proibidas as relações com o estrangeiro, sob pena de decapitação, pelo governador provincial Chu Huan, que, por isso, se tornou tão impopular e sujeito a tantos ataques que foi destituído de todos os cargos. Por estranho que seja, nos Anais não há qualquer menção à catástrofe de Liampó, como foi narrada por Mendes Pinto.
Não obstante, à falta de uma versão autêntica no que se refere à história colonial portuguesa, o relato de Mendes Pinto sobre a catástrofe, estereótipo de quase todas as obras históricas sobre as relações da China com estrangeiros, fica como a versão não-desmentida da sorte misteriosa que teve a primeira colónia europeia na China, sem ter em conta o facto de, em 1543, uma frota pirata de trezentas embarcações ter, também, deixado Xangai em ruínas. Mendes Pinto, contudo, nada diz sobre os ataques japoneses daquela época, ataques cujas narrativas teriam tido menor impacte na China não fosse ter sido ele e os seus amigos quem, em Tanegashima, iniciou os japoneses no uso de armas de fogo, ao que se seguiu a sua manufactura, com febril actividade e maravilhosa arte. Não admira que, em Xangai, um cronista nativo atribua o sucesso japonês aos seus auxiliares estrangeiros, escravos negros e diabos brancos ao seu serviço, muito destros no uso de armas de fogo, espadas e lanças; nem que outro cronista atribua a derrota chinesa ao descontentamento provocado pela incapacidade do magistrado da cidade de fornecer, aos bravos de Kiangsi, cobras e cães para a sua ração habitual. Donde se infere que o pensamento ia primeiro para a comida e só depois, então, para as aflições da China.
Depois da destruição de Liampó os portugueses asseguraram uma base em Chicheu, perto de Amoy, por meio de pesados subornos. Também aí a mesma horrível sorte os alcançou, dois anos mais tarde segundo Mendes Pinto, em consequência de uma disputa pelos bens de um arménio morto. Um administrador oficial, Aires Botelho Sousa, com fama de homem sem princípios e ganancioso, tomou como fazenda parte dos bens e algumas mercadorias que dois comerciantes chineses diziam suas e que, como não lhes fossem restituídas, se queixaram aos mandarins, que imediatamente proibiram as relações dos nativos com os portugueses, racionando o fornecimento de provisões. Levados pela fome, passaram a região a pente fino.
Isto terminou em escaramuças que levantaram o distrito inteiro contra eles. Enquanto um exército acabava rapidamente com os portugueses uma frota deitou fogo aos seus barcos; e de quinhentos portugueses apenas cerca de trinta escaparam a uma morte atroz. Esta foi a horrível sorte das primeiras colonizações europeias na China, varridas da face da Terra pelas acções ilegítimas de alguns, como narrou Mendes Pinto e envolvendo a terrível expiação centenas de homens honestos e suas famílias. Com estas horríveis hecatombes a China queria evidentemente impedir os portugueses de frequentarem as suas costas inóspitas. No entanto nada intimidou estes esforçados navegadores.


Os proscritos dirigiam-se agora para Sanchuan. Mas, conscientes de uma instabilidade que era real, contentavam-se com visitas relâmpago. Alguns faziam tendas com as velas e os remos, outros levantavam barracas de esteiras que eram desmanchadas quando, realizado o comércio proibido, deixavam a ilha: eis quanto a comprada tolerância dos mandarins permitia. Aventurar-se até Cantão representava prisão perpétua, torturas e morte. Por precária e desencorajante que fosse a situação o intrépido missionário S. Francisco tão merecidamente chamado o Apóstolo do Oriente convenceu Afonso de Noronha, vice-rei de Goa, e enviar uma embaixada à China com o propósito de engrandecer a causa da cristandade e obter a libertação dos muitos portugueses aí prisioneiros. Foi escolhido como enviado um grande admirador e amigo do zeloso missionário Diogo Pereira, um mercador rico a expensas de quem eram os presentes levados para a corte de Pequim. Mas a caminho da China, em 1552, a missão teve um desaire:
  • Em Malaca, o governador, Álvaro da Gama, que segundo se dizia, invejava Diogo Pereira, deteve-o sob o pretexto de que, como filho de Vasco da Gama, era ele próprio a personalidade competente para o importante cargo de enviado à China e não quem tinha sido um simples servo de um nobre até há pouco. Para reforçar o impedimento, e com a justificação de que o navio era necessário à defesa do local, tiraram o leme ao barco de Diogo Pereira. S. Francisco excomungou Álvaro e sacudiu mesmo dos seus sapatos o pó de Malaca quando sem o enviado e os seus presentes, embarcou.
Doente angustiado, o destemido e abnegado aristocrata espanhol chegou a Sanchuan apenas para terminar a sua extraordinária carreira naquela solidão, enquanto esperava reunir-se com uma embaixada tributária do Sião». In Carlos Montalto de Jesus, Historic Macao, 1926, Macau Histórico, 1ª edição em Português, 1990, Livros do Oriente, Fundação Oriente, ISBN 972-9418-01-2.

Cortesia da F. Oriente/JDACT