domingo, 27 de janeiro de 2013

Unicórnio, Etc.. A década de 50 e as “Córnio”. José Augusto França. Miguel Real. «… toda a juventude poética, pictórica, crítica e ensaística da década de 50 que não se revia já no presencismo, no academismo, no neo-realismo e no republicanismo liberal da I República, eis a causa do imenso caldeirão revolucionário»

Desenho de almadanegreiros
jdact e wikipedia

(Continuação)

«Em terceiro lugar, aproxima-as a crença da exclusiva, intrínseca e ontológica autonomia estética do plano da arte, condensada no conhecido pensamento de Eduardo Lourenço - a obra de arte é uma realidade absoluta, fundada sobre o nada ontológico, cristalizando num mundo ficcional, emotivo, abstracto, figurativo, geométrico…, o sentimento de ausência de mundo real, ou, em termos mais simples, a obra de arte tem o seu fundamento em si própria.
Afastadas dos pruridos republicanos e socializantes da Seara Nova e da orientação comunista de Vértice a partir de 1945, saída de Eduardo Lourenço e entrada de Joaquim Namorado, as Córnio também se diferenciam das restantes novas revistas da década de 50, ainda que com estas partilhem o mesmo novo espírito europeu. Em concreto, o que as diferencia? Em primeiro lugar, as cinco Córnio, publicadas entre 1951 e 1956, não personificam a visão conjunta de um grupo de escritores ou pensadores, como é habitual em Portugal, mas a visão pessoal de José Augusto França, que as apresenta, não como revistas, mas como antologias de textos solicitadas a autores seleccionados pelo próprio, são, assim, indubitavelmente, expressão de um projecto individual sem par em toda a década e, porventura, com raros paralelos na história da cultura portuguesa. Que sentido cultural propõe o projecto pessoal de França entre 1951 e 1956, quando é simultaneamente co-editor dos Cadernos de Poesia, participa em Árvore e Cassiopeia, e escreve abundantemente em jornais? Presumimos que o seu projecto se encontra sintetizado na citação que faz de Rimbaud em Pentacórnio (31/12/56): Il faut être absolument moderne, isto é, José Augusto França intentaria resgatar o genuíno espírito do modernismo de Amadeo, de Santa Rita, de Pessoa, de Almada, de Pacheko, um espírito sem forma nem conteúdo explícitos, concretos, que, europeiamente, nos anos 50, permitisse assumir as novas formas e conteúdos estéticos, ou, dito de outro modo, enterrar os anteriores cinquenta anos de cultura em Portugal, conforme síntese da primeira metade do século XX em Portugal, em Tetracórnio, 1955, abrindo-a a novíssimas e instigantes experiências estéticas.
Em terceiro lugar, e como consequência dos anteriores, as Córnio constituem-se como a primeira revista ensaística portuguesa a exprimir, em Portugal, o novo espírito cultural europeu pós-II Guerra Mundial, não o espírito da nova poesia, as novas revistas citadas, ou da nova filosofia, a fenomenologia e o existencialismo constantes dos artigos da bracarense e jesuítica Revista Portuguesa de Filosofia, 1945, da coimbrã Revista Filosófica, 1951, de Joaquim de Carvalho, e da lisboeta 57, de António Quadros, vinculando o existencialismo ao espiritualismo português, mas do ensaísmo em geral, o ensaísmo sem quê nem porquê, senão levar o pensamento a pensar, um ensaísmo aberto, abertíssimo, cujos pontos de partida e final se encontram apenas limitados pela humanidade existencial do homem; do ponto específico da década, um ensaísmo anti-realista, anti-psicologista, anti-académico e anti-dogmático, ou seja e de novo, um ensaísmo à Almada, à Pessoa e à António Pedro.
Em quarto lugar, como síntese concreta das anteriores diferenças, seria forçoso reunir nas Córnio toda a juventude poética, pictórica, crítica e ensaística da década de 50 que não se revia já no presencismo, no academismo, no neo-realismo e no republicanismo liberal da I República, eis a causa do imenso caldeirão revolucionário que constitui a totalidade dos seus cinco números, reunindo a juventude cultural de horizonte estético europeu:
  • António Ramos Rosa, José Blanc de Portugal, Rui Cinatti, um Adolfo Casais Monteiro pós-presencista, Sophia, Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, Alexandre O’Neill, Tomás Ribas, Alberto de Lacerda, Fernando Lemos, Fernando Azevedo, o juvenilíssimo Alfredo Margarido, Vespeira, Delfim Santos e José Marinho, David Mourão-Ferreira, o crítico literário nem-presencista-nem-neo-realista José Pedro de Andrade, José Terra, António Quadros, Carlos Eduardo Soveral, Óscar Lopes… e, perfazendo a ponte com o passado, inéditos de Fernando Pessoa, Almada, António Pedro e de um António Sérgio pós-ruptura com a Seara Nova.

Um impressionante leque de pensamento e arte aberto às novas correntes estéticas europeias! Para compor o imenso ramalhete do novo, apenas falta Eugénio de Andrade. É a cultura portuguesa da segunda metade do século a abrir-se à Europa, anunciando um mundo novo, sem os epígonos de Eça e Camilo, de António Nobre e António Patrício, de Malheiro Dias e Júlio Dantas».

In Inicórnio, ETC., Mostra Documental, 2006-2007, apresentação de José Augusto França, Biblioteca Nacional, 2006, A década de 50 e as Córnio, Miguel Real, ISBN 978-972-565-413-2.

continua
Cortesia da BNP/JDACT