quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Fernando Pessoa. Rei da Nossa Baviera. Eduardo Lourenço. «É vão fingir que não sabemos que o “mito-Pessoa”, tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de “inexistência”»

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«Na verdade, não é a solidão das estrelas, nem o barco anónimo, nem objecto algum, que importam ao poeta de Tabacaria ou da Ode Marítima, mas a ocasião que lhe oferecem de se descobrir, olhando-os, ser consciente da sua própria finitude infinita, prisioneiro do labirinto do Tempo. Sempre a lírica se alimentou da nossa temporalidade, das folhas mortas e dos amores mais mortos do que elas.
Mas na lírica clássica e ainda na romântica, o eu, o poeta e quem o lia, iam na barca do Tempo para alguma espécie de porto. Deus, ou alguém por ele, esperavam-nos no fim para conferir sentido à viagem. A viagem de Pessoa, a nossa viagem em Pessoa é, desde o começo, a de alguém definitivamente perdido. Nem o princípio nem o fim nos são conhecidos mais que nos símbolos que de princípio e fim podemos conceber. Não estamos no Tempo, somos Tempo. Mas se o Tempo é, nós não somos ou somos como Pessoa se esforçou por imaginar que seria, se fosse Caeiro, Reis ou Campos. Nenhum poeta da Modernidade exprimiu como Pessoa esta absoluta perdição do sentido do nosso destino enquanto mundo moderno e isto bastaria para que o autor da Tabacaria se tivesse convertido não apenas no mito que é para nós, mas numa das referências-chave da Cultura contemporânea. De uma maneira ou de outra, o homem moderno comparticipa desse sentimento de radical solidão e de absurdo que pouco a pouco emergiu com o processo de isolamento e de inumanidade da civilização actual. Era-lhe fácil reconhecer-se naquele que por nós todos

desfraldou ao conjunto fictício das estrelas
o esplendor nenhum da vida.

Ter dado uma figura espectacular ao sentimento absurdo da existência, por mais fundado que ele seja na consciência moderna, não basta para explicar o fascínio de Pessoa. Na realidade, essa missão, menos caramente paga que a de Antero ou do seu amigo Sá-Carneiro, seus precursores ou émulos em visão trágica da vida, não seria suficiente para o converter em mito. Como o não foi, nem o podia ser, a invenção poética propriamente dita esse não sei quê clássico que inspira o fascínio, em última análise, inexplicável, da autêntica poesia. A esse título, o seu amigo Sá-Carneiro e, sobretudo, o seu tão admirado Camilo Pessanha representariam melhor o puro poeta, a assumpção misteriosa da palavra que comove pelo que nela há de mais vulnerável e inexprimível. Todavia, nenhum deles se converteu (ainda?) em presença avassaladora universal e quase anónima, nesse imenso delta onde tantos de nós, desde há meio século, inscrevem as miragens mais raras ou decifram as mensagens mais ocultas, como se mergulhassem as mãos ao mesmo tempo no seu próprio espírito e no coração de uma época.
É vão fingir que não sabemos que o mito-Pessoa, tanto em si como no seu estatuto poético de amplitude hoje universal, repousa essencialmente na encenação prodigiosa a que Pessoa submeteu o seu radical sentimento de inexistência. Refiro-me à comédia dos Heterónimos, que tanta tinta, e raramente boa, tem feito correr. O célebre drama em gente, a invenção dos Pessoa-outros destinados a cumprir pelo único que havia os sonhos de felicidade ou grandeza imaginárias que só de os pensar o destruíam, é o último acto do longo processo de dissolução do Eu inaugurado pelo Romantismo. Dos duplos demoníacos de Hoffmann a Dostoievski, dos pseudónimos de Kierkegaard às máscaras de Browning, até ao je est un autre de Rimbaud, é larga a lista dos que se viveram sem a salvadora crença que durante séculos nos inculcaram como feitos à imagem de Deus e, como ele, unos e virtualmente imortais. Mas também, de portas adentro, Pessoa foi o termo de um claro processo de heteronimização que tem as suas raízes em Garrett e já quase uma configuração pessoana em Eça de Queirós (Fradique), sem esquecer, naturalmente, os dois Anteros que, em silêncio, devoraram o verdadeiro». In Eduardo Lourenço, Fernando Pessoa, Rei da Nossa Baviera, Gradiva, 2008, ISBN 978-989-616-242-9.

Cortesia Gradiva/JDACT