segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «De tudo isto não dissera nem uma palavra a frei Berenguer que, desde o princípio, se negara a aceitar qualquer facto positivo lá onde tinham estado. Criticava ferozmente a comida, o vestuário e inclusivamente a tradicional cortesia mongol»

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A Viagem
(…) Para o companheiro, frei Pere de Tever, este tipo de atitude havia representado um grave problema desde o início. A intransigência e o fanatismo de frei Berenguer tinham sido maus companheiros de viagem. Porém, a sua função era a de um simples ajudante para além de que, dada a idade do seu irmão de religião, mais parecia uma muleta do que um secretário. A sua juventude inclinava-o para a curiosidade e a excitação de uma viagem como aquela, e sentira-se bem entre o povo mongol. Surpreendera-o a grande tolerância existente naquela corte e as múltiplas embaixadas de países remotos à espera de audiência haviam-lhe permitido ocupar muitas horas a conhecer gente diferente e de costumes tão opostos, Estava fascinado com a religião do Grande Khan, o xamanismo, com a sua crença de que existe um só Deus, ao qual é possível adorar de muitas formas diferentes. Espantado, vira como o Ilkhan Hulagu assistia a diferentes cerimónias religiosas, budistas, cristãs, muçulmanas, com o mesmo respeito que lhe merecia a sua própria. De tudo isto não dissera nem uma palavra a frei Berenguer que, desde o princípio, se negara a aceitar qualquer facto positivo lá onde tinham estado. Criticava ferozmente a comida, o vestuário e inclusivamente a tradicional cortesia mongol. A própria imperatriz Dokuz Khatum ficou desagradavelmente surpreendida com a violência dos seus argumentos, se bem que o escutasse com amabilidade, e não voltou a recebe-lo, apesar dos rogos do jovem frade e da ira de frei Berenguer, cego a tudo quanto não fosse as suas próprias crenças.
Na realidade, os mongóis deixaram o seu velho irmão a ferver na própria raiva e frustração, negando-se a ouvi-lo mas, ao mesmo tempo, tratando-o com suprema amabilidade, E isso é que tinha sido pior, aquela cortesia era cem vezes pior do que a tortura e o martírio para com o seu intolerante irmão. Por outro lado, frei Pere de Tever não conhecera nada igual na sua curta vida. Como filho segundo de uma família da nobreza rural, fora entregue à ordem dos Pregadores com dez anos e crescera entre as paredes do convento, pensando que a sua vida permaneceria imutável. Desde muito novo deu mostras de grande talento para o estudo e a aprendizagem das línguas: o latim, o grego, o árabe, o hebreu. Era um apaixonado pelas bibliotecas dos mosteiros, a tradução de livros antigos e esquecidos, e durante muito tempo pensou que o seu futuro estava ali. Aos dezasseis anos, a ordem enviava-o de mosteiro em mosteiro para copiar determinado pergaminho, traduzir um texto ou simplesmente averiguar o número de livros que possuía determinada biblioteca conventual. E gostava desse trabalho, gostava mesmo muito desse trabalho.
Quando o superior lhe comunicou a ordem para efectuar aquela viagem, ficou inquieto e a perturbação apoderou-se dele. Não conhecia da vida senão a ordem estrita do convento e do mundo exterior os rumores de grande perigos murmurados pelos padres de mais idade. Mas toda a perturbação desapareceu como que por magia, quando embarcou em Marselha rumo ao desconhecido. A vida agitada da travessia, o ar do mar que lhe impregnava os pulmões como nunca antes nada lhos enchera, a visão da imensidade dos mares e estepes, tudo isso lhe transmitiu a sensação do minúsculo que era o mundo de onde vinha. A realidade ampliava-se para ele a cada passo e o espírito enriquecia-se perante o estrépito de cores, línguas e costumes que ia conhecendo. Ao mesmo tempo que o cérebro de frei Berenguer se encerrava no baú das suas crenças, frei Pere de Tever descobria que o mundo não terminava no jardim do claustro. Escreveu com esmero a carta que o irmão lhe ditou, sem fazer comentários, transcreveu a extensa lista de ofensas e opróbios, guardando para si a sua opinião. Sabia que era perder tempo tentar convencer o irmão e também que podia ser muitíssimo perigoso dissuadi-lo. Não, reflectiu, será melhor esperar por uma ocasião mais propícia, há-de haver uma possibilidade de dar a conhecer o meu ponto de vista quando me interrogarem. Tinha a certeza de que seria interrogado em confissão, os seus superiores não deixariam de comprovar se aquela viagem influíra nas suas crenças, se teria contraído alguma doença perigosa no contacto com o mundo exterior. Tinha de agir com muita prudência e cautela. Ficou absorto nos seus pensamentos e os seus lábios deixaram até de recitar a oração. Tinha de encontrar maneira de manifestar a sua opinião sem ser acusado de rebeldia». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT